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Rui Zink - A Realidade agora a Cores

Page history last edited by Helena Barbas 10 years, 10 months ago

Rui Zink 


A Realidade agora a Cores


 

No reino da literatura - uma reedição que é um novo texto sobre o prazer de fabricar histórias 

 

Chega-nos um novo livro de Rui Zink que, paradoxalmente, é uma reedição e um texto duplamente novo. Primeiro pelo trabalho de reescrita, pelo modo como o autor pegou em histórias e frases antigas - algumas da primeira versão, outras usadas em textos posteriores - e no-las devolve com diferentes tonalidades. Depois pelo prazer da leitura que, para além da surpresa desejável, se confronta com ecos do já conhecido sob outras cores. A frase «a realidade é a cores, mas o preto e branco é mais realista» aparece como uma das epígrafes e foi roubada a Wim Wenders. A metade inicial serviu para o título; o resto inspira a estrutura básica do livro, o «lado bom» e o «lado mau», sob os quais se abrigam as várias histórias-fragmentos narrativos.

   Há algum pudor técnico em chamar ao volume romance ou novela, mas também não pode ser considerado uma «colectânea de contos» nem antologia de qualquer coisa. Uma fuga às regras que justifica a epígrafe, agora de Peter Handke, a inaugurar «o lado mau»: «Tal é o reino da literatura. Transformar a incapacidade de pertencer a um sistema na capacidade de não pertencer a um sistema.» Obedecendo a este propósito, cada capítulo, conto, fragmento - por vezes ele próprio estilhaçado em vários tipos de discurso (poema, notícia, até ao «nonsense» de «Última hora») - acaba como parte de um todo. Talvez devido à ordenação das narrativas - até porque a primeira, «Tudo começou quando», tem por tema um homem na eminência da morte a contar aquela sua derradeira experiência e, como manda a tradição, sugere-se que esteja a rever a sua vida: «É estranho, sim. Não consigo deixar de me sentir um bocado idiota ao estar para aqui a tentar fazer um balanço da minha vida, como se eu lhe reconhecesse uma unidade qualquer. Impossível. Impensável. Se fui eu que passei por tudo o que passei, não creio ter sido sempre este eu, que agora constata o absurdo de falar de algo que, mal acontece e existe, se põe logo em fuga para o mundo das coisas não existentes» (pág. 24). Assim, jogando com a necessidade de narrar própria do humano - de dar um princípio meio e fim às tais coisas em fuga com que nos cruzamos, de fazer um balanço, não apenas solene e da existência mas dos próprios acontecimentos do dia a dia - que não admite a descontinuidade, os textos seguintes são naturalmente lidos como episódios possíveis do passado daquele moribundo. Mesmo quando são igualmente outras história de morte - até porque ele é apenas o primeiro: «E eu confirmo: não é nada curta a fila de moribundos à espera que eu acabe para poderem também dizer a última verdade. Adeus, vou desligar. Beijinhos à Natércia e ao Líbano» (pág. 25).

   Então, a ausência de sistema torna-se ela própria um sistema novo, recriado em cada acto de leitura. E prova-se a literatura como «capacidade de não pertencer a um sistema» porque, apesar de tudo, fabricamos uma unidade intrínseca a partir da ordenação dos fragmentos. Esta alimenta-se de alguma personagem que salta de uma para outra narrativa dado ter o mesmo nome; cresce porque são oferecidas discretas interpretações diferentes para factos anteriores (que assim adquirem novos sentidos) e também ligeiras referências a acontecimentos a encontrar nos textos seguintes. Será uma brincadeira com analepses e prolepses que se prolonga noutra mais vasta, com o chamado pacto narrativo e, por consequência, com a crença do leitor.

   Rui Zink já nos habitou à sua mordacidade, que aqui explode em muitas ousadias. No tratamento paródico de alguns problemas sociais sérios (os ciganos, o tráfico de órgãos, o Casal Ventoso), que acaba a funcionar como crítica irónica. Mas principalmente nos usos da linguagem, que vai da invenção de novos termos («sacavanear») a «pastiches» de jargões vários. O jornalístico, como em «Penúltima hora», onde a notícia sobre uma bomba num restaurante dá lugar ao vocabulário da crítica culinária, um excurso de propaganda ao menu e ao local, para regressar ao evento trágico; o do literário, como a escrita de Eça de Queiroz, em «Capítulo inédito», apresentado como uma recém-descoberta primeira versão de um excerto de Os Maias, anterior ainda à polémica Tragédia da Rua das Flores. No mínimo, muito divertido.

 

Helena Barbas [Expresso - 1360, 21 Novembro 1998]


A Realidade agora a Cores - Rui Zink,  Europa-América, Mem-Martins (1998) 192 págs.


 

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