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Vladimir Nabokov - Transparências

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 4 months ago
 
Vladimir Nabokov

Transparências

Um olhar através da matéria para denunciar os processos da memória e da escrita
 
   Vladimir Nabokov (1899-1977) deixou de escrever em russo­ desde 1940 e naturalizou-se americano em 1945. Repatriado­ postumamente, em tempos de «Perestroika» e «Glastnost», está ­a tornar-se o ídolo dos jovens prosadores que o consideram­ como o grande mestre do movimento pós-modernista soviético. ­Os seus textos não são de carácter político, nem tão-pouco­ desconhecidos na sua pátria, mas só agora começaram a sair­ da clandestinidade, a ser traduzidos e editados, qual Transparências.
 
   O autor define este romance como «um conjunto­ de conversas sobre o amor», logo também sobre a vida, a ­morte e a escrita. Uma personagem, Hugh (You/tu), Peterson/­Person (Pessoa)/Parson (Pároco), revisita os espaços do seu ­passado - a Suiça, oito anos antes -, o tempo do seu­ sonambulismo, em que não distingue o sonho da vigília. Do­ mesmo modo, o autor viaja pela sua própria escrita, no­ recuperar de imagens e temas de textos anteriores­ (encontam-se ecos do herói de The Don/O Professor - 1957, ou ­de Lolita - 1959).
 
   Mais uma vez, Nabokov parodia o escritor­ convencional – aqui também o revisor de provas - e, com a ­conivência do leitor, dilui os limites entre arte e real, ­palavras e acontecimentos: «Quando nos concentramos num­ objecto material, seja qual for a sua situação, o próprio ­acto da atenção pode levar-nos a mergulhar involuntariamente na história desse objecto. Os ­principiantes devem aprender a desnatar a matéria se­ quiserem que a matéria permaneça ao nível exacto do momento. ­Transparências, através das quais o passado resplandece.» ­(p.7).
 
   A matéria pode, assim, ser opaca ou translúcida, de­ acordo com a vontade do narrador. O seu olhar funciona como ­uma espécie de raio-X de intensidade regulável no atravessar ­do mundo, do tempo e do espaço. Passado e presente sobrepõem-se como camadas indeléveis: «Um folheado fino de ­realidade imediata espalha-se sobre a matéria natural e ­artificial, e quem quer que deseje permanecer no agora, com­o agora, sobre o agora, não deverá, por favor, quebrar a sua­ película de tensão.» (p.8). Através do aqui e agora, ao ­mais pequeno descuido, emergem cenas antigas.
 
   A memória é ­constituída por «slides»/imagens que se sobrepõem, não­ cronologicamente, mas de acordo com os graus de afectos a elas ligados. Multiplicam-se as visitas aos mesmos lugares,­ paisagens, quartos de hotel, marcados por recordações ­diversas de cada uma das personagens, todos sujeitos a uma ­transparência que, ironicamente, não poupa a digestão do ­próprio herói (p.126). A transparência nasce, pois, da omnisciência do narrador, que é exibida e partilhada com o ­leitor, pela cumplicidade que estabelece à revelia das­ personagens, pelas informações insólitas que vão sendo dadas ­sobre o destino de objectos, irrelevantes para o fio­ principal da intriga, mas que desencadeiam associações ­literárias com a tradição do romance picaresco.
 

Um livro tão bonito quanto a capa de Jorge Colombo, e tão ­inquietante quanto as suas folhas que se soltam à primeira ­leitura.

 

Helena Barbas [O Independente, 26 de Maio de 1989, III p.46]

 


 Transparências - Vladimir Nabokov, trad. Margarida­ Santiago, Teorema, Lisboa (1989)


 

 

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