Vaclav Havel
Audiência, Vernissage, Petição
Três breves peças de teatro a explorar os (ab)usos da linguagem.
Vaclav Havel é um autor tornado político em consequência da sua arte. Nascido em Praga, a 5 de Outubro de 1936, e desde cedo o seu destino é coagido pelo poder: o facto de a sua família ser de origem burguesa torna-lhe impossível tirar um curso superior, levando-o ao mundo do trabalho.
Escreve desde os anos cinquenta, mas apenas na década seguinte se torna conhecido pelas suas encenações, e pelos textos dramáticos que exibe no teatro Na Zabradli. Auto-stop, Os Melhores Rocks da Senhora Hermanova, A Rola que perdeu o norte (alguns em colaboração com Ivan Vystocil), abrem caminho para os seus primeiros êxitos Festa ao Ar Livre (1963) e Notificação, duas peças que, nas palavras de Milan Kundera, são fundamentais para entender os anos sessenta na Boémia: «Estas duas peças são abertamente inspiradas no teatro do absurdo de Eugène Ionesco (...) todas as suas peças nos fascinaram pela sua natureza radicalmente anti-ideológica. Elas devolviam a autonomia à arte e convidavam a regressar ao terreno da liberdade de invenção.» («Il Fallait Détruire Candide», prefácio a Audience, Vernissage, Pétition, de Vaclav Havel, Gallimard, Paris, 1980, p.10).
Kundera, o exilado, melhor que ninguém poderá entender e falar do seu compatriota. E justifica a perseguição política a Havel por questões culturais: «Não se pode conceber Havel sem o exemplo de Ionesco, mas ele não é o seu epígono. As suas peças são um desenvolvimento muito original e insubstituível daquilo a que se chama o «teatro do absurdo». E elas assim o foram entendidas, por todos, na sua época: se o absurdo de Ionesco vai buscar a sua inspiração às profundezas do irracional, Havel mostra-se fascinado pelo absurdo do racional. E se o teatro de Ionesco é uma crítica da língua, o regime totalitário fez uma tal paródia da linguagem que a crítica geral da língua que Havel faz se tornou, de imediato, uma desmistificação das relações sociais concretas.» (p.10).
Como quase sempre acontece, a arte ameaça o poder. Para além das questões que os temas abordados poderão levantar, o teatro de Havel assusta porque brinca com a linguagem, o principal meio de comunicação entre os homens: «O sentido profundo das peças «absurdas» de Havel, dos anos sessenta, foi, justamente, uma desmistificação radical do vocabulário. Estas peças mostram um mundo onde as palavras não têm sentido, ou então possuem um sentido diferente daquele que exibem, ou ainda, são um ecrã atrás do qual a realidade desapareceu. Depois de 1968, quando foi expulso do teatro e não pode continuar a sua crítica literária da linguagem, ele transforma a sua própria vida numa magnífica desmistificação da linguagem: ele é um dos principais inspiradores, criadores, e porta-voz da Carta 77» (p.12).
É ainda Kundera quem explica como se processou a mudança. Para qualquer ideologia a linguagem é, por excelência, o instrumento de ataque e manipulação. No caso soviético, era patente a diferença entre o vocabulário da ideologia e a realidade da prática social: por um lado, apregoava-se uma sociedade igualitária, quando se respeitavam, doentiamente, classes e hierarquias; por outro, ainda com base na igualdade, proclamava-se o internacionalismo, que mascarava um sentido da nacionalidade exacerbado e expansionista. Usa-se, então, um falso vocabulário que: «coloca sistematicamente o debate sobre um terreno falso e torna praticamente impossível a análise da realidade concreta.»(p.12).
Assim, os membros da «Carta 77» vão conduzir-se: «como se as palavras quizessem realmente dizer aquilo que elas pretendem querer dizer. Eles não buscam demonstrar que a ideologia no poder é má, mas o seu olhar cândido desmascara, sistematicamente, o engano gigantesco que ela é.» (p.13). Foi, assim, porque transferiu para o campo da actividade política os processos utilizados na escrita teatral que Havel se torna um dissidente, vindo a ser expulso do teatro, perseguido, e mais tarde, preso.
A invasão russa de 1968 obriga o autor a desligar-se do seu teatro e do seu público. O afastamento revela-se seguramente doloroso, pois será uma ameaça de «morte».Primeiro, porque Havel entende a representação teatral como algo de imediato e concreto, dirigido aos espectadores no presente, um diálogo real e insubstituível: «Uma peça é um produto semi-manufacturado que apenas no palco revela o seu ser. O teatro é uma forma social que depende, mais do que qualquer outra, da sua eventual manifestação pública e, por isso, de condições culturais gerais. Pode-se teoricamente conceber um filme rodado em intenção da posteridade; o teatro, esse existe no presente, ou não existe.» Depois, porque lhe deixa como alternativa, ou o abandono da sua carreira, ou a reformulação total do seu modo de trabalhar: «Estava demasiado habituado a um teatro e a um público concretos, a esse estado concreto que era o ponto de partida e a conclusão da minha obra, demasiado habituado a essa “transubstanciação” entre a minha arte e a actualidade para começar a exprimir-me “por amor da arte” a pensar “no mundoem geral”, a lançar uma peça ao mar sem sequer saber quem a representaria, como, para quê, e porquê».
O dramaturgo opta pela segunda hipótese, e busca adaptar os seus textos seguintes ao novo tempo que se anuncia, o das «espinhas curvadas» e da denúncia, sem no entanto abdicar da sua rectidão. Datam deste período três peças sem grande êxito: Os Conspiradores (1971) onde, abandonando os processos satíricos anteriores, busca desenvolver o tema da crise de identidade; a Ópera dos Quatro Vinténs (1972) de Gay, tornada famosa por Brecht; e Hotel dos Cumes, (1976). Junto com Brecht, ecoam Jarry e também Kafka, em particular na última peça. Havel recorre aos diálogos fragmentados que perdem o seu sentido fora do espaço-tempo teatral, e outras técnicas: «Refrães, diálogos, inversões, mistura de réplicas, rupturas cronológicas e outros acessórios utilizados nas minhas peças anteriores ao serviço de um tema, assumem aqui uma autonomia, fazem-se sujeito, procuram tornar-se, por si, portadores de significação./ Transparecem nela os temas da desintegração humana e da esquizofrenia existencial, mas apenas no limite em que podem ser endossados pelos referidos processos – por exemplo, através de metamorfoses insólitas das personagens».
São, porém, três pequenas peças, escritas «rapidamente, para divertimento de amigos» em 1975, e levadas à cena no ano seguinte pelo Burtheatre de Viena, que vêm a relançar a carreira do dramaturgo. São elas Audiência, Vernissage, e Petição, agora traduzidas para português pela Relógio d'Água que, segundo os críticos, representariam «o tipo de teatro moderno de interpelação», e corresponderão a uma nova fase do autor.
Evidenciando características mais «realistas» que os textos anteriores, cada uma destas peças é composta por um único acto. Partindo de situações biográficas, poderão ser entendidas como três breves retratos, algo insólitos, de uma sociedade onde impera a «normalização».
Audiência tem por tema um vulgar encontro entre um operário de uma fábrica de cerveja (Vanek) e o seu chefe (o cervejeiro), que lentamente adquire tonalidades de pesadelo. À medida que vai questionando Vacek, o cervejeiro levanta suspeitas relativamente a todos os colegas daquele. E o isolamento da personagem, já marcada pela perseguição (Vacek é um escritor), torna-se total. A desconfiança entre os indivíduos é instaurada pelo perigo que representa uma palavra mal colocada, ou mal interpretada: passa-se ao reino do medo. Aqui, a única hipótese de convívio possível baseia-se no comércio de interesses. E a situação raia o absurdo quando, em troca de um posto mais adequado – chefe de armazém - o cervejeiro pede a Vacek que se denuncie a si próprio, para garantir o emprego e a protecção do seu superior.
Também em Vernissage vai estar presente a incomunicabilidade, mas de modo diverso. Como tema principal, encontra-se um outro tipo de relações individuais: o casamento. O conflito vai ser insinuado pela oposiçäo entre dois pares, modelo de dois comportamentos possíveis. O casal ideal que se pretende impor como norma, composto por Vera e Michal, e o seu contraponto, representado por Bedrich, e a sua mulher, Eva, sempre ausente, mas constantemente referida pela personagem feminina.
Bedrich é convidado pelos seus amigos para admirar a nova decoração da sua casa – a sua «Vernissage» – pretexto para a exibição de todo um modo de vida. Aqui, o absurdo resulta do cenário, da profusão e disparidade de objectos que inundam o apartamento, enumerados em didascália ao longo de uma página: «A sala está decorada com abundantes antiguidades diversas e objectos curiosos, como por exemplo: uma tabuleta de loja, estilo fim de século, uma jarra chinesa, um anjinho barroco de arenito, uma arca de madeira com embutidos, uma pintura popular tradicional em vidro, um ícone russo, morteiros e moinhos antigos, etc.» A quantidade de elementos, combinados de modo impossível, acaba por subverter todo o sentido das falas das personagens, da sua defesa da «norma». Assim, este casal «perfeito», onde marido e mulher se entendem para além do verosímil, cuja criança se descreve como exemplar, vivendo em conformidade com as regras e para a pura satisfação do material, torna-se numa caricatura, robotizada, do real. Cria-se, assim, uma oposição mais forte relativamente ao idealismo pouco frutuoso e ainda menos funcional do par Bedrich/Eva. A perfeição da norma revela-se como maldição.
Por sua vez, Petição (1997) põe em cena duas personagens, o dissidente Vanek (de novo), recém-saído da prisão, visita o seu amigo Stanek, ex-colega de luta e «actualmente» director de televisão, bem colocado na vida. Stanek mantém preso o noivo da sua filha e pai do seu futuro neto, e solicita a Vanek que, como «profissional», faça uma petição para que aquele seja libertado. A ironia nasce do discurso de Stanek. Este começa a criticar a redacção do texto, que considera demasiado violenta. Depois, «pensando em voz alta», com uma lógica esmagadora, desenvolve um raciocínio onde prova as desvantagens que a sua assinatura do documento trará, não apenas ao preso, mas a todo o movimento dissidente. Como principal argumento, apresenta a posição geral do público que, implicitamente, é a sua: «… essas pessoas, interiormente odeiam os dissidentes, porque compreendem que eles representam a sua má consciência e, ao mesmo tempo, invejam-lhes o seu orgulho e a liberdade interior…». Stanek exibe-se como a verdadeira vítima do sistema, acabando por transformar Vanek num herói falhado e um pouco estúpido.
Em todas as peças a incongruência das situações é agravada pela sucessiva demarcação do tempo: inúmeros copos de cerveja; sempre a mesma hora marcada pela mesma música do mesmo relógio; vários copos de conhaque. Em qualquer dos casos, o futuro torna-se inexistente, pela marcação de um presente contínuo, igualmente pontuado pelo decrescendo e redução das falas repetidas.
São as réplicas iterativas que contribuem para as mudanças de clima psicológico de Audiência e Vernissage. As mesmas frases, referidas até à náusea, acabam por perder em importância, credibilidade e valor: as palavras perdem o seu sentido. O discurso transforma-se em obsessão, os diálogos em monólogos, e a linguagem deixa de desempenhar o seu papel de partilha. Em Petição desenvolve-se um processo oposto com resultados idênticos: o brilho do discurso ofusca o auditor, as palavras são usadas de modo exímio para, sofisticamente, defender o indefensável.
As peças terminam como começaram, instaurando a circularidade, o beco sem saída, tão caro a Sartre. E como moral destas parábolas, pode ainda retirar-se a ideia de que o poder não existe sem oposição, e que é a oposição que lhe dá sentido.
Qualquer das situações encenadas acorda em nós, portuguese, fantasmas nem por isso muito velhos: a identificação com o nosso passado recente é demasiado óbvia. Esperemos que em breve sejam representadas entre nós, espectadores privilegiados para entender as «nuances» e implicações dos conflitos em jogo.
Estas «miniaturas nascidas de modo improvisado», acabam por provar a eficácia do «programa» de Havel: «escrever efectivamente para alguém [...] ; apoiar-me sobre o que é familiar, sobre o quadro concreto da minha existência pessoal […]; desfazer-me de um aparato intelectual demasiado lógico e raciocinante para responder melhor à dimensão existencial do mundo que as minhas anteriores peças não haviam conseguido alcançar».
Ex-poeta, ex-dramaturgo, ex-preso político, Vaclav Havel é agora o presidente de uma república porque teve a coragem de viver a sua própria filosofia: nem Platão poderia ter desejado melhor.
Helena Barbas [O Independente, 14 de Dezembro de 1990, III p.77-9]
Audiência, Vernissage e Petição - Vaclav Havel, trad. Anna de Almeidova e José Vidal de Almeida, Relógio d'Água, Lisboa (1990)
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