Urbano Tavares Rodrigues - A Flor da Utopia


 

Urbano Tavares Rodrigues


 A Flor da Utopia


 

Uma experiência de narrativa poética, com história, sonho e ensaio à mistura

 

   No prólogo, de Fevereiro de 2003, em vésperas dos 80 anos, Urbano Tavares Rodrigues faz um balanço biobibliográfico. Escreve: «Uma vida como um rio faz-se também de outras vidas que com ela confluem e lhe trazem alimento, alegria, luz, consciência da realidade. (...) Segundo a lógica e o movimento da história e da biologia, devo estar perto do litoral em que de vez o sol se apaga e por isso recebo serenamente o que cada nova manhã me possa oferecer de beleza, de imprevisto e de ternura. Porque, apesar da iminência de uma guerra estúpida e atroz e dos grotescos Bushes que na terra vão surgindo, flagelos da Humanidade, a vida é maravilhosa» (pág. 17). Lucidez e deslumbramento são características do olhar de Urbano sobre um mundo e as suas Histórias que matam os sonhos e as utopias.

 

   Este quase álbum é composto por três pequenos textos: «O Derrubar das Estátuas», «A Hera Chorando Sangue» e «A Flor da Utopia» - que vai emprestar o seu nome ao volume. Três histórias a que as soberbas imagens de Rogério Ribeiro servem de contraponto, onde se fala das guerras e do amor, das esperanças realizadas e principalmente das frustradas.

 

   «O Derrubar das Estátuas» começa em Fevereiro de 1948 - data-chave em que se vão concentrar todas as sublevações que inflamaram Paris e ensanguentaram o Sena: 1830, 1789. O narrador-testemunha cruza-se com todos os heróis e tiranos, nomes daqueles tempos: «Torno a encontrar neste palácio da memória, isto é, no Jardim das Tulherias, Fréderic e Hussonet, avaliando a evolução da luta. Dussardier que os cruza, a sangrar da cabeça por debaixo da ligadura, mas confiante, radioso, estimula-os a seguirem-no. ‘Viva a República!’» (pág. 25). Assiste com Flaubert à passagem dos combatentes extenuados, vê Baudelaire nas barricadas, conhece todos os amantes, todas as traições: «Vi, depois, com os olhos do coração, morrer Dussardier, de braços abertos, como um Cristo, agora à frente do povo, num motim já quase sem esperança - mais barricadas -, após a derrocada de Junho. É Sénécal quem o mata, agora já do lado da ordem, ele o socialista puramente teórico, ansioso de autoridade, cujas ideias afinal nunca haviam coincidido com os sentimentos» (pág. 41).

 

   Na segunda narrativa decalcam-se os processos da primeira, serve-lhe mesmo de continuação, num regime temporal tornado credível pela poesia. Fala-se da Comuna de Março de 1871, e desta feita o narrador vigia Verlaine e Rimbaud, acompanha Vaillant e Camélinat.

 

   «A Flor da Utopia» é dedicada a Maio de 1968, a que, curiosamente, o narrador-autor não assistiu directamente - estava em Roma. Mas é como se estivesse em Paris: «'Danny le rouge' dá entrevistas em que já se denuncia, senão o oportunista dos anos noventa, pelo menos o campeão dos ‘media’. Os jovens filósofos deitam também a cabeça de fora. Parece que Bernard Henri-Lévy é acirradamente pró-chinês. A revolução cultural faz furor, sobretudo entre os muito novos, ansiosos de protagonismo e violência justiceira» (pág. 76). Tal como antes aconteceu, tudo irá passar, voltar ao «normal». A lucidez da utopia vem nas palavras de uma mulher, Carmen Rodriguez: «(...) O curso da história é repetitivo. Luta-se pela dignidade humana, pela justiça, consegue-se o que se quer, ou só uma aproximação, mas até isso depois se perde... E depois renascem outra vez os ideais, a esperança e vem outra vitória e tudo é outra vez transitório» (pág. 83). Porque o que é necessário é uma revolução interior, do homem, feita sobre si próprio. Mas, entretanto, diz ainda Carmen ao seu companheiro: «Nenhuma revolução assegura de vez a felicidade do homem. E apesar disso, de o saber... Vamos lá Robert, vamos para as barricadas, mesmo que estejam lá para cair, vamos, vem!» (pág. 87).

 

Helena Barbas [Expresso 1615, 2003]

 


 

A Flor da Utopia - Urbano Tavares Rodrigues (texto), Rogério Ribeiro (ilustrações), Armando Alves (direcção gráfica) -  ASA, 2003