Umberto Eco
O Pendulo de Foucault
Um regresso à narrativa com um romance místico-esotérico, um «policial metafísico»
Após o êxito internacional alcançado por O Nome da Rosa, Umberto Eco regressa ao romance com O Pêndulo de Foucault que, quanto mais não seja pela bem orquestrada campanha de propaganda – e pela polémica que está a suscitar em Itália –, promete ultrapassar o sucesso anterior.
Eco é um académico célebre pelos seus ensaios semióticos, que se abalançou pelo espaço da escrita «criativa», e que recusa qualquer oposição entre aquelas duas formas de actividade: «Como se Shakespeare fosse um criador e Kant o não fosse». Pretende que se reúnam num só acto as duas variantes, distinguindo-as, apenas, relativamente à intenção do autor: se este pretende explicar-se, ilustrar uma tese, e o leitor não o compreende, o leitor é estúpido; se o autor escreve um romance e pretende explicar todas as suas ambiguidades para que o leitor o entenda, é o autor o estúpido. Esta «boutade» tão característica, resume, no entanto, um dos principais problemas que este novo livro coloca.
Em primeiro lugar, porque se revela como uma tentativa de pôr em prática conceitos presentes e desenvolvidos nos textos teóricos (por exemplo, o idioma estético como modelo epistémico e cultural, o conceito de «máquina semiótica» associada a um pensamento semântico enciclopédico e a uma memória inventiva, a arte como problema de crença, ou insistência nos critérios de racionalidade, entre outros).
O didactismo é agravado pelo tamanho e quantidade das zonas informativas, desencadeadas, evidentemente, por estratégias de descrição quase primárias que, na maior parte das vezes, fazem esquecer a própria intriga - o porquê de tanta informação e, pior ainda, quem está a dizer o quê a quem. O narrador embriaga-se de dados e, como um computador descontrolado, não resiste a transcrever todas as fichas de todas as informações que possui, criando todo o tipo de analogias, encharcando o leitor com associações muito para além do necessário. Por detrás da barba do semiótico e dos óculos do romancista, está à espreita o professor que quer garantir uma total passagem do conhecimento aos seus leitores-alunos, à partida ignorantes na matéria. E explica tudo, desde o nome das personagens ao processo seguido para elaborar a própria narrativa.
Assim, como bom teórico, Eco revela o projecto que orientou a sua escrita. Numa entrevista para o Magazine Litteraire (nº.262, Fev.89), informa que o seu romance foi construído a partir de duas experiências biográficas obsessivas – o encontro com o Pêndulo de Léon Foucault no Conservatoire des Arts et Métiers de Paris, e um toque de trompete num enterro de resistentes italianos: «A partir dessas duas imagens para mim determinantes... tive a ideia de uma aposta, um verdadeiro desafio: seria possível retirar de estas duas histórias, aparentemente tão diferentes uma da outra, qualquer coisa que não seja absolutamente incongruente? De facto, elas não eram incongruentes em relação a mim próprio. O problema, se quiser, era de estabelecer um curto circuito entre as duas. E sobre isso interveio um terceiro elemento na minha memória: o curto-circuito mágico...». Esta ideia de recorrer à magia vem a ser reforçada por uma frase de Chesterton, que substitui a falta de crença em Deus pelo «acreditar em qualquer coisa». E o universo da fé em tudo aparece-lhe, simultaneamente: «como a raiz da magia e da nova ciência do Renascimento, e como a raiz do fascismo eterno». E, acrescente-se, como a raiz do seu conceito de arte.
A magia, sob todas as suas formas e seitas, vai ser usada para alimentar a noção de segredo, o que torna o depositário um iniciado, um eleito perante os outros homens. E por analogia, será o pêndulo, objecto hoje científico mas inicialmente mágico, que se revela como símbolo dessa fascinação: «Fui tocado por essa atmosfera mágica (do Conservatoire); também por essa epifania do pêndulo e, para além de tudo o que podem dizer os sábios sobre um objecto que fica fixo no meio da rotação do universo, verdadeiramente fascinado por essa imagem da imobilidade». Fascinação patente na própria narrativa: «Eu sabia que a Terra estava a girar, e eu com ela, e Saint-Martin-des-Champs e toda a Paris comigo, e juntos girávamos sob o Pêndulo que na realidade nunca alterava a direcção do seu plano, porque lá em cima, donde pendia, e ao longo do infinito prolongamento ideal do fio, de cima na direcção das mais longínquas galáxias, imóvel até à eternidade, estava o Ponto Firme.» (p.10).
Idêntico, ou herdeiro, do fio de prumo – elemento importante no simbolismo maçónico - o pêndulo representa evidentemente o eixo cósmico que marca a direcção da actividade celeste, e aqui tem uma função religiosa. Mais que simples metáfora ou símbolo, é a prova material da existência de «um ser que move sem ser movido, eterno, essência pura e actualidade pura», preenchendo todos os termos pelos quais a filosofia tem definido Deus: Aristóteles (p.11), mas também Giordano Bruno, ou Pascal (p.183, 543) – relação que vem a ser explicitamente afirmada (p.211).
Por esta via se criam ligações com o romance anterior. Falando sobre O Nome da Rosa, Eco considera que, na ausência de Deus, o único local de conservação da memória da humanidade, onde figuram todos os homens, é a biblioteca: «Então podemos, talvez, dizer, como o tinha compreendido Borges, que a biblioteca é um "ersatz", um substituto de Deus. Se Deus existe, dado que ele é omnisciente, ele é uma espécie de grande biblioteca».
A imagem do sagrado é agora alargada à estruturação dos dez capítulos de O Pêndulo. Cada um tem por título o nome de um dos sefirots – as emanações de Deus, que manifestam a sua actividade descendente. São os elementos de mediação que permitem o regresso ao «En-Sof», o apreender a essência não apreensível. A sua organização – que corresponde a um percurso iniciático – desenha a figura de Adão Kadmon, o Golem a quem foi dada a vida e a fala, o homem original na sua forma mais pura, símbolo do deus vivo e síntese do universo criado. Estes capítulos – Sephira são ainda sub-divididos em 120 partes, o número da eleição.
Assim, primeiro que tudo, O Pêndulo de Foucault é, como lhe chama Jacques Le Goff, um «romance policial metafísico», mas não um romance histórico. Diferentemente do que acontece com O Nome da Rosa, a História não aparece verdadeiramente reelaborada pelo tempo do discurso. Nunca chega a perder a sua dimensão enciclopédica inicial, tal como apresentada pela personagem de Causabon».
Este jovem investigador faz fichas-resumo para uma tese académica e, depois do grau obtido, abre uma agência de informações culturais instalando-se como o Sam Spade da cultura. O primeiro trabalho de Causabon é sobre o processo de extinção dos Templários, e daí parte para uma compilação sobre todas as variantes de todas as ciências chamadas ocultas - da cabala renascentista à presente Macumba brasileira, do druidismo celta às últimas manifestações maçónicas e encenações alquímicas, passando por homúnculos e fénix, acabando no sacrifício humano.
Esta viagem pelas sabedorias marginais é acompanhada de citações e bibliografias autênticas que, embora por vezes desmistificadas, não são, de facto «parodiadas» (ainda no sentido aristotélico) como o exigiria o género, ou parece pretender o autor.
Neste campo, outras questões se levantam que poderiam suscitar alguma renitência no uso do próprio termo de romance. É do cruzamento de Causabon com outras duas personagens, apoiadas por Abulafia, o computador, que se desenvolve uma intriga linear e pouco complexa. Revisores numa editora que inicia a publicação de livros de ocultismo, resolvem inventar um «Plano», uma maquinação à escala cósmica, que justifique a evolução da filosofia oculta nas suas relações com a História. O plano funda-se num segredo perigoso e mortal.
Por sua vez, tanto as personagens principais quanto as secundárias, caracterizadas superficialmente, não apresentam uma evolução interior ou conflitos íntimos evidentes, e a única possibilidade verdadeiramente dramática – a de Belbo – é excessivamente dividida e separada pelos extensos diálogos-descrições teóricos, que lhe retiram força e convicção. Também o jogo temporal não revela grandes complexidades. O herói, à espera que os seus inimigos o encontrem, narra, quase cronologicamente, os acontecimentos dos últimos doze anos, servindo-se, por vezes, de ficheiros informáticos criados por outra das personagens.
Não há dúvidas, no entanto, que este romance - histórico policial, ocultista e metafísico – irá ser um «best-seller», o que de modo algum afligirá o seu autor.
Helena Barbas [O Independente, 9 de Junho de 1989, III p. 51-2]
O Pendulo de Foucault - Umberto Eco, trad. de José Colaço Barreiros, Difel, Lisboa (1989)
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