Humberto Eco
Entre a Mentira e a Ironia
As verdades da mentira
Mais do que uma reflexão literária ou semiótica sobre a mentira e a ironia, neste pequeno livro Eco reúne quatro ensaios em torno do nunca verbalizado problema da Verdade das palavras, e do tema explícito da mentira do seu uso. Uma preocupação que aparece em O Pêndulo de Foucault, disfarçada a entremear uma conversa de bar ligeira em que se exploram as consequências do paradoxo de Epiménias - aqui também citado: «Tudo o que eu digo é falso» (pág. 93). A afirmação de que se vai mentir, e que transforma todas as subsequentes falsidades em verdade, estruturou já o fabuloso F for Fake, de Orson Welles. Sem lhe definir os conceitos, Eco recorre a ela como sendo a única alternativa a toda a mentira que, em última instância, é qualquer uso da linguagem. Porque se a linguagem simboliza, mediatiza, exige referentes, é inspirada por, ou se reporta a diversos registos e crenças, será sempre uma prática enganadora.
Uma ideia antiga que serve de fio condutor a estes textos não inéditos: as conferências «Migrações de Cagliostro» (1991), «A Linguagem Mendaz em Manzoni» (1986) e «Campanile: o Cómico como Distanciamento» (1991) e a introdução «Geografia Imperfeita de Corto Maltese» (1991). No primeiro, discute-se o fabrico da personagem do Conde de Cagliostro, charlatão ou alquimista, taumaturgo ou vígaro, cuja figura lendária se constrói por oposição ao seu homólogo, o Conde de Saint-Germain, tornados ambos exemplos de praticantes da mentira: descarada e afirmativa o primeiro, por omissão o segundo. São ainda as suas lendas exemplo da falsidade dos relatos históricos, que se vão fundindo até à verdade da ficção narrativa.
Da mentira enquanto jogo com as expectativas e crenças dos outros, Eco passa à exploração da enganadora «semiose artificial da linguagem verbal» relativamente àquilo que chama «semiose popular» de origem «natural» (as outras formas de comunicação não oral) que melhor suscitam a tal crença dos menos cultos, tal como veiculada em I Promessi Sposi, de Alessandro Manzoni (1827). O problema da situação de «double bind», por um lado (não enunciada por Eco, mas que foi estudada por Gregory Bateson), e dos códigos quinéticos e linguagem corporal, por outro, suscitam antes a leitura de Edward T. Hall, mais um homem da «escola» de Palo Alto (A Dimensão Oculta, 1986, e A Linguagem Silenciosa, 1994, na Relógio d'Água).
Eco continua com a resenha dos efeitos do cómico nos romances de Achille Campanile, definindo o «cómico da vida» como «fisiológico», relativamente ao «cómico do texto», levando a que se entenda este último como um jogo com a discrepância de referentes, e logo de novo de verdades ou crenças entre as personagens em cena, numa subversão do próprio pacto narrativo. E, por fim, oferece-nos a reedição da nota introdutória a Balada do Mar Salgado, de Hugo Pratt: «onde os mapas geográficos contradizem as palavras, que não determinam mas antes corrompem os contornos do espaço» (pág. 112), uma desorientação que se revela metáfora da história do Pacífico: «história de gente que descobre sempre a terra de que não andava à procura» (pág. 108), aplicável ela ao acto de leitura em geral e à destes ensaios em particular.
Não têm eles nem a densidade nem a dimensão teórica a que Eco nos habituou, mas possuirão a virtude de sugerir outros textos, de suscitar a apetência de outras leituras - a dos autores de que fala em primeiro lugar, e logo a seguir do pequeno e acutilante ensaio de Alexandre Koyré Reflexões sobre a Mentira (Frenesi, 1996); ou a do velhinho William Empson e Seven Types of Ambiguity (1930).
Helena Barbas [Expresso, 2000]
Entre a Mentira e a Ironia - Humberto Eco - Trad. José Colaço Barreiros - Difel, 2000
Comments (0)
You don't have permission to comment on this page.