Teresa Veiga
A Paz Doméstica
A tragédia do banal
Resolveu Teresa Veiga fazer a sua primeira incursão pelo romance com A Paz Doméstica. Já nos surpreendera antes com as suas novelas - destaque-se O Último amante, intitulando o livro de 1990 - e os seus contos em A Bela Fria de 1992. Ao contrário do que se poderia supor, não se tratam aqueles de exercícios de treino para a obra de maior fôlego agora apresentada. São antes experiências autónomas e diversas com variados efeitos de significação e diferenças de registo, notáveis pela subtileza.
Aparentemente, este romance não possui o brilho das narrativas anteriores. Talvez porque a intriga se ofereça como mais comezinha, os ambientes mais prosaicos, as personagens muito vulgares. Mas é um livro que depois de fechado começa a incomodar, impedindo-se de cair no esquecimento da prateleira.
Tem por história a vida da bastarda Dinora, estranhamente banal, e de algumas estranhas personagens com quem esta se vai cruzando por um período recente. Dinora é filha de Manuel Luís e de Arminda, uma das paixões extra-matrimoniais daquele, que acaba por ser semi-aceite pela legítima, Isabel Montalvão.
Para o casamento entre Manuel Luís e Isabel terá contribuído a oposição dos pais desta, que tiraram informações sobre o pretendente da sua esmerada filha: «Manuel Luís pertencia a uma família humilde, fora criado por uma madrinha de reputação duvidosa, tinha dívidas e pernoitava em pensões baratas com raparigas da ralé.» (pág. 8). Insinua-se que a Manuel Luís terá agradado a possibilidade de uma vida desafogada.
São outros os encantos que seduzem Isabel Montalvão, a menina-família do Norte que não descansa enquanto não consegue casar-se com este professor de liceu. Era belo e falava muito bem alemão. Um intelectual - qualidade que o redime das ausências de aristocracias. Pensou talvez que o casamento iria corrigir a sua faceta de mulherengo, mas não terá sido assim. Nomeadas, houve pelo menos mais duas mulheres na sua vida, Arminda e Leni. Conta-nos Dinora: «O meu pai gostava das três e toda a sua infelicidade estava em que nenhuma o consolava da ausência das outras. Aparentemente era um marido cumpridor, o que quer dizer que vinha dormir a casa todas as noites e passava as tardes de domingo a corrigir exercícios, sentado à secretária do escritório. Pelo seu lado, Isabel Montalvão prezava acima de tudo a paz doméstica e não perdia tempo com análises de sentimentos que considerava matéria de folhetins.» (pág. 7)
Do casamento legal saíram duas crianças, Matilde e Hugo. O percalço, que foi Dinora, é aceite na casa quando Arminda morre cerca de dez anos depois.
A história centra-se, assim, no crescimento de Dinora dentro daquela família que só aparentemente a adopta. E pela voz da jovem, e depois mulher, vamos descobrindo a diferença entre as aparências de uma relação feliz, as falsidades de uma paz doméstica, e os preços que se pagam para as manter.
Curioso é o registo terra-a-terra a que a heroína-vítima recorre para nos narrar as suas desventuras, um tom neutro, de adjectivação rasa, que não permite colorir emocionalmente as circunstâncias mais dramáticas da sua vida, nem da sua morte. Dinora exibe apenas os factos, fala-nos das acções deles decorrentes, mas omite as emoções que experimenta a eles associadas: uma fuga de Viseu para Lisboa, uma estadia na Alemanha como «au-pair», um apressado regresso à pátria com uma criança dentro de si, um casamento falhado.
O processo narrativo escolhido leva a que a história evolua através de um desenrolar de mal-entendidos para as outras personagens, um acumular de subentendidos para nós leitores, que nos agarra até à última página.
E não nos larga depois dela. Talvez devido ao também curioso desfecho a que - agora Teresa Veiga - recorre, e que nos dois últimos capítulos destrói - ou reconstrói - toda a narrativa. Tecnicamente, trata-se de uma simples mudança de narrador, e logo, de ponto de vista. Necessário, porque entretanto Dinora se suicidou. Mas com um registo ainda mais banalizador que o antecedente, e com consequências irritantemente inesperadas.
Mais não se diz para não estragar o prazer deste jogo literário.
Helena Barbas [Expresso, 15 Maio 1999]
A Paz Doméstica - Teresa Veiga, Cotovia, Lisboa (1999) 162 págs.
Comments (0)
You don't have permission to comment on this page.