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Teolinda Gersão - Os Teclados

Page history last edited by Helena Barbas 10 years, 9 months ago

 

Teolinda Gersão


Os Teclados


Ironias biográficas

 

   Sendo pelo tamanho uma pequena novela, este novo livro de Teolinda Gersão começa por furar o esquema dos géneros através da densidade do conteúdo: é de facto um romance de aprendizagem, debruçando-se sobre o percurso de Júlia do princípio ao fim da adolescência, da descoberta do terror pela sua diferença até ao assumir da individualidade. Com os seus defeitos e dons. No caso, a timidez e a inteligência da música. «O piano era uma armadilha que a apanhava de surpresa. Julgava brincar com o teclado mas era o teclado que brincava com ela. No meio de uma frase, um acidente reduzia a metade a distância à nota seguinte, ou, pelo contrário, aumentava-a, uma diferença mínima, que no entanto arrastava pesadas consequências, como se o bater de asas de um insecto fizesse rebentar uma tempestade à distância.» (pág. 30).

   Consequência talvez desta moderna teoria do caos, ou antigo conceito das correspondências entre os altos e os baixos, Júlia deixa-se levar pelos acasos, imposições de uma ordem do Universo que não pretende entender, que aceita criticamente no que coincide e não está em conflito com os racionais ditames do seu coração. Tem todas as condições para ter problemas em casa, com a sua estranha família de velhotes meio loucos, ou na escola, mas apercebe-se disso e defende-se por uma ocultação que é mais transparência camaleónica do que hipocrisia.

   Não se trata de modo algum de um romance sobre adolescentes, nem para adolescentes. Antes um exercício muito sério de assombros e encantamentos – da autora, da personagem e nossos – desencadeados pelas reflexões sobre pormenores e episódios do quotidiano: uma ida ao circo, em que um fechar de olhos pode provocar a queda da trapezista; o entendimento com um desprezado e artrítico professor de piano; a descoberta da autoria alheia e antiga de um pensamento já pensado por si numa aula de matemática. Mais curiosa é a revelação suscitada por um texto datado, lido na sala de impaciências a aguardar a vez para uma consulta de dentista.

   Júlia cresce através de uma descoberta do conhecimento em todos os lugares, mesmo os mais humildes e desinteressantes. É porém a descrição do encontro com esta peça jornalística – «Um suplemento de domingo, onde uma mulher falava de um teclado. Não era o de um piano, apenas o de um computador, verificou decepcionada» (pág. 51) - que vai constituir o momento mais irónico, inquietante e perverso do romance, e simultaneamente mais rico em termos teóricos. A personagem vai abandonar o pasquim e pegar-lhe no aborrecimento da espera: «Retomou o jornal bocejando. Era uma entrevista, a propósito de um livro. Um romance, parecia. Havia uma fotografia de mulher que o escrevera, nem sequer olhou, voltou a página, começou a ler ao cimo da coluna. A mulher estava ligada ao teclado, dizia, ele fazia parte da sua vida. Mas em último caso o teclado não existia, era uma pura transparência. Ela procurava alguma coisa que não era da ordem das palavras, embora só pudesse transmiti-la em palavras, algo talvez comparável à música, embora não equivalente (...). Aceitava entregar-se àquele trabalho que não era verdadeiramente explicável e não se podia controlar. Era uma tarefa desmedida, mas também humilde e perigosa, porque se trabalhava sem rede» (pág. 52).

   Um excerto longo e indispensável. Porque, mais do que uma ligação simbólica às acrobacias da trapezista, quem se recorda encontra aqui a paráfrase de entrevistas que a autora deu há algum tempo, quando da saída de A Casa da Cabeça de Cavalo (1995). Este associar dos acontecimentos públicos e biográficos da autora com o comportamento da personagem é uma inversão no uso do «fait-divers», que aqui se assume como conhecido de todos.

   O exibir dos mecanismos da fabricação literária prolonga-se numa paródia discreta que culmina na descrição de uma das fotos publicadas na altura (págs. 56-57), ou na própria fotografia da contracapa do presente livro: «Parecia tranquila, como se sorrisse interiormente» (pág. 56). Esta serenidade «irrita» Júlia, que passa a discutir mentalmente com a entrevistada colocando-se na posição da dupla, ou da leitora ideal que Helena Estêvão – saberemos depois que se chama assim a autora - parece desejar: «Ela gostaria de pensar que o leitor era como o escritor, de certa maneira a sua outra face, disse a mulher: Aceitava os mesmos riscos, passava as mesmas noites em claro, tropeçava nos mesmos escolhos, sonhava os mesmos sonhos. Para depois reagir sobre eles, eventualmente contra eles. Reinventava o livro como o intérprete tocando a partitura.»

   Com o avançar da história outras duplicidades se constroem ainda, tornando Júlia e Helena reflexos especulares, em que cada uma representa a via e a vida do que a outra poderia ter sido. Assim, o romance transforma-se também numa reflexão filosófica sobre a relação entre arte e vida, as ironias de uma e as partidas que a outra vai pregando. A ler devagar, porque acaba muito depressa.

 

Helena Barbas [Expresso - 1386, 24 Maio 1999]

 


Os Teclados - Teolinda Gersão - Dom Quixote, Lisboa (1999) 98 págs.


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