Shusaku Endo
O Silêncio
Os problemas das conversões ao cristianismo no século XVII.
Shusaku Endo é um japonês nascido em Tóquio (1923), que tem sido sucessivamente comparado aos grandes romancistas católicos europeus, como François Mauriac e Graham Greene. Estudou literatura francesa na universidade de Keio e, em 1952, vem para Lyon onde acaba por fazer uma tese sobre o tema do ciúme na obra de Mauriac.
Numa reportagem publicada pela revista Lire (Jan.89) confessa ter lido Thérese Desqueyroux, de Mauriac, entre setenta a oitenta vezes. Confirma, assim, o seu interesse antigo por aquele autor mas, principalmente, reitera a ligação com as preocupações religiosas evidentes na escrita daquele, a que se associam os pressupostos filosóficos de Jacques Maritain.
A situação é curiosa porque no Japão imperam o budismo e o xintoísmo. Endo começou por pertencer à fé católica por imposição, até que a assumiu conscientemente como único escape ao nihilismo. Aderiu a uma religião minoritária, regida por valores culturais alheios à sua tradição, o que não deixou de lhe trazer problemas. Interrogado e perseguido durante a 2ª. Grande Guerra, enfrenta todas as provações que considera terem fortalecido sua fé. Conhece, portanto, «de dentro», os conflitos com que se debatem os seus heróis.
Pela sua obra perpassam homens assolados por problemas éticos, divididos entre duas culturas, duas religiões ou ideologias, entre o Oriente e o Ocidente. Em português existe já O Samurai (D. Quixote, 1987) editado quatro anos depois de O Silêncio que agora se traduziu. Os dois romances debruçam-se sobre um mesmo período histórico - o da entrada do cristianismo no Japão - sendo O Silêncio relativo a uma segunda fase, de embargo à actividade missionária e expulsão do bando dos «kirishtan» e seus sacerdotes (1614).
O herói de O Silêncio é um jesuíta português, Sebastião Rodrigues que, em 1638, parte de Lisboa para o Japão com o objectivo de manter a fé e apoiar os indígenas convertidos em tempo de perseguições. Tem como segundo objectivo encontrar um antigo professor, o provincial da ordem Cristóvão Ferreira, e confirmar a informação de que, após trinta anos de trabalho apostólico, face à tortura, teria renegado.
Apesar de avisos dos superiores hierárquicos, Rodrigues insiste na sua viagem em direcção ao martírio, pautada pelos passos da via-sacra. O sacerdote identifica-se expressamente com Cristo e os momentos mais trágicos da paixão, não lhe faltando, inclusive, um Judas-Kishijiro que o vende por 300 moedas. É através desta personagem que surge a grande questionação ao cristianismo enquanto lei de amor: «Porventura seria Cristo capaz de buscar e amar um homem destes, sujo e imundo como nenhum outro? Até num canalha, é certo, se poderá descobrir uma centelha de força e beleza, mas chamar canalha a Kishijiro já era favor...» (p.146).
Todavia, a situação histórica e os inimigos são diversos, e Rodrigues vê-se confrontado com um dilema terrível: escolher entre suportar a responsabilidade da tortura e morte das suas ovelhas, a que os seus carcereiros o forçam a assistir, ou evitar essas mortes, pelo renegar da fé católica e pisar da imagem de Cristo, o Éfumié.
Este dilema é duplamente agravado. Pela crescente constatação da indiferença divina face aos sofrimentos humanos, o silêncio de Deus que se estende à própria natureza: «Sei que hoje, dia em que Mochiki e Ichizo choraram sofreram e morreram para maior glória de Deus, não consigo suportar o monótono fragor deste negro mar, abocanhando com os seus colmilhos a areia da praia. Como fundo a este mar sinistro, paira o silêncio de Deus... a sensação de que Deus continua de braços cruzados ante os clamores atirados ao céu por estes homens.» (p.86).
Por outro lado, Rodrigues toma conhecimento de que o Deus europeu se aculturou naquele país onde não se entende a diferença entre o Bem e o Mal, onde o pecado e a culpabilidade não existem: «Já desde o princípio que os japoneses, que confundiam Deus com Dainichi, começaram a deformar e a adaptar à sua maneira o nosso Deus, criando algo diferente. Mesmo quando a confusão de vocabulário desapareceu, as distorções e adaptações prosseguiram sub-repticiamente. (...) Não era no Deus cristão que acreditavam... Até hoje, nunca os japoneses tiveram o conceito de Deus; nem jamais o terão.» (pp.183-84).
As palavras dos missionários recebiam um sentido diferente do que lhes era atribuído e a sua religião acabava dissolvida nas já vigentes. Pelo xintoísmo, e devido ao relacionamento do imperador com a deusa do sol, o povo é, ao contrário do resto do mundo, naturalmente eleito – não necessita de redenção. Com aquele se fundira um budismo que, na maioria dos seus preceitos, se encontra demasiado próximo do pensamento cristão.
A situação de Rodrigues torna-se exemplar, num sentido geral, enquanto representante de um determinado grupo, e num sentido particular, enquanto registo da evolução espiritual de um homem em busca de si próprio, através do divino. E o encontro pretende dar-se por intermédio do lado mais humano de Cristo, o homem-deus perseguido e sofredor, desprezado e rejeitado pelos outros homens.
O texto aspira à veracidade histórica ao construir-se a partir de cartas «autografas» de Sebastião Rodrigues dirigidas ao seu superior: «Escrevo-lhe dia a dia, folha a folha, um relato que antes se diria um diário sem datas.» (p.39). A partir do momento em que é preso e encarcerado, as cartas são substituídas pela voz de um narrador anónimo. Os últimos anos da vida do herói, e a sua morte por volta de 1674, são resumidos no relatório de um capitão de navio holandês, em apêndice.
Embora a nível histórico a biografia pertença de facto a um italiano, Guiseppe Chiara, a escolha da nacionalidade portuguesa para as personagens principais não é fortuita nem mal intencionada. São os portugueses quem, acidentalmente, descobre o Japão ao mundo Ocidental por volta de 1542. Talvez Fernão Mendes Pinto e seus dois companheiros Diogo Zeimoto e Cristóvão Borralho, num dos seus muitos naufrágios. Estes «Chenchocogins do cabo do mundo» são seguramente responsáveis pela introdução das armas de fogo e do fabrico da pólvora naquele país (Peregrinação, cap. cxxxiiii).
Este relacionamento estabelecido pelo enxofre e incenso é magistralmente descrito por Venceslau de Morais: «Em 1549 o Jesuíta Francisco Xavier, espanhol de origem, mas servindo portugueses, desembarca no Japão, em Kagoshima, e enceta a sua propaganda religiosa, seguido de perto por outros nossos missionários e numerosos mercadores. Em 1587, dá-se a primeira perseguição contra os cristãos. Em 1597, em Nagasaki, vinte e seis cristãos perecem no martírio. Em 1624, após lutas cruentas, tragédias e massacres, o Japão fecha à cristandade as suas portas, com excepção dos holandeses...» (Os Serões no Japão, Parceria A. M. Pereira, 1973, p.142). Lendo Relance da História do Japão, ainda de Morais, entende-se que, por detrás do conflito individual de Sebastião Rodrigues, está o Histórico, apenas esboçado no romance de Shusaku Endo: a grande luta religiosa entre protestantes e católicos; o conflito de interesses comerciais entre as grandes potências do período; o fechamento do Japão ao ocidente, fundamentado na necessidade de independência e autonomia.
O Silêncio não é um romance teológico, mas evidencia a posição dogmática de Endo face à religião católica. As suas personagens só pelo renunciar aos aspectos mais materiais da religião, pelo abandono das manifestações culturais da fé,podem alcançar a redenção e entender a natureza de Cristo: o Cristo benevolente, que convida o jesuíta Rodrigues a pisar a sua face, é o mesmo com quem Hasekura, O Samurai se encontra. Um Cristo tão oriental que parece tocar as raias da heresia.
A preocupação religiosa do autor transborda no excesso de referências e comparações com os momentos mais conhecidos da Paixão, redundantes para a cultura judaico-cristã. Por sua vez, as situações de conflito interior não são exploradas em todas as suas possibilidades, o que acaba por reduzir a densidade psicológica das personagens a uma certa superficialidade.
No entanto, estes mesmos aspectos revelam-se como manifestação de um esforço sincero de entendimento do ocidente por um olhar oriental, pelo que em nada diminuem o interesse deste singular romance.
Helena Barbas [O Independente, 4 de Maio de 1990, III p.43]
O Silêncio - Shusaku Endo, trad. (do inglês) José David Nunes, Dom Quixote, Lisboa (1990)
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