Ramon Llull
Livro do Amigo e do Amado
Um livro místico de um dos maiores pensadores lógicos de sempre
1. Ramon LLull, também conhecido como Raimundo Lúlio, é uma das figuras mais estranhas da Idade Média pela auréola de mistério e aventura que envolve tanto a sua pessoa quanto a sua obra. O «Patriarca da Literatura Catalã», «Quixote do divino», ou «heraldo» dos místicos espanhóis, nasce em Maiorca em 1232 ou 35. Sabe-se que foi trovador, mordomo do futuro rei D. Jaime e que casou com Blanca Picany antes de 1257. Aos 30 anos abandona mulher e filhos pelo eremitério, dedicando-se à reflexão filosófica.
No monte de Randa (1272), ainda em Maiorca, é acometido de uma visão que lhe inspira o cerne da sua obra, a Ars magna ou generalis (uma Arte que contenha em si e sintetize os princípios de todas as outras artes), e a sua missão: através da lógica, do raciocínio (e nos casos mais graves com o auxílio da força) converter judeus, mouros e tártaros à religião cristã. Durante nove anos aprende a língua e a ciência dos árabes, e em 1290 propõe aos Papas um plano de cruzada e de missão nos países infiéis.
Visita várias cidades (Montpellier, Génova, Nápoles, Barcelona) e escreve inúmeros tratados contra os averroistas. Numa terceira estadia em Paris (1310-11) lecciona a sua Arte na Sorbonne. Em 1311 assiste ao Concílio Viena exigindo que sejam criados, em Roma e nas universidades, centros de ensino do árabe e hebraico para preparar os futuros missionários-cavaleiros.
Parte ele próprio para o Norte de África com a intenção de, pacificamente, converter os gentios. Reza a lenda que terá sido apedrejado em Bujía, e recolhido já moribundo por uns mercadores catalães que o levam para Maiorca, onde vem a falecer em 1315 ou 1316.
2. Testemunho das preocupações que dominam os finais do século XIII, a sua obra aspira ao sistematizar de uma organização hierárquica do pensamento e do mundo, bem como à unidade espiritual que, materialmente, se traduz pelo espírito de cruzada. A Ars Magna de LLull procura responder às questões técnicas deixadas em aberto pelo silogismo aristotélico, para o que, além da lógica do árabe Al-Ghazãli, recorre à filosofia de João Escoto Erígena.
Estabelece, então, o que apelida de processo de «descoberta», pelo esgotar de todas as combinações possíveis entre as Dignidades ou nove atributos/nomes de Deus (Bondade, Magnitude, Eternidade; Poder, Sabedoria, Vontade; Virtude, Verdade, Glória;), com os quatro elementos (ar, água, terra e fogo), analisadas de acordo com as relações da lógica (diferença, concordância, contrariedade; princípio, meio, fim; maior, igual, menor;) e com as questões aplicáveis ao sujeito (se existe, o que é, de que é feito, porque existe, quão grande é, qual é, quando é, onde é, com quem está), que obedecem ainda à estrutura ternária que rege os poderes da alma (entendimento, vontade, memória).
Llull acreditava que tinha encontrado, a partir dos padrões fundamentais da natureza, uma Arte que, por analogia ascendente ou descendente, poderia ser aplicada a todas as artes e ciências, e representa cada uma delas por um diagrama em forma de árvore, com seus ramos e raízes. Esta complexa floresta combinatória é usada como base dos seus mais variados escritos, onde filosofia e política se não distinguem da religião ou da mística.
3. Para além dos poemas teológicos Cent Noms de Deus(1285) e Desconort (1296), e da alegoria Arbor Scientiae(1296), os dois grandes textos místicos de LLull são os Llibre de Contemplació en Deu (1272) e Llibre d'Amic e Amat (1276-79) escritos em vernáculo e inseridos na parte final (livro 5) do Llibre de Evast e Blanquerna (1283).
Filho de Evast e Aloma, Blanquerna recusa casar-se com Cana, optando por uma vida de eremita, consagrada exclusivamente a Deus, na máxima abnegação dos bens deste mundo: «Voy a los bosques contemplar a mi Señor Jesucristo». Numa segunda fase envereda pela carreira de prelado. Torna-se Abade de um Mosteiro, escrevendo as suas regras, e depois alcança não apenas a posição de Bispo como ainda de Papa.
Blanquerna planeia e ordena os diversos níveis de actividade apostólica, mostrando sempre grande preocupação com o propagar da fé. O seu universalismo – decalcado sobre o sistema de LLull – está presente não apenas a nível da unificação das ciências e da religião, como também da própria linguagem, propondo o latim como língua ecuménica, uma espécie de «esperanto» que, facilitando a comunicação entre os povos, permitisse resolver os conflitos e instaurar a paz.
Cedendo à sua vocação primeira, o Papa Blanquerna demite-se do seu cargo a fim de regressar à vida de eremitério. É nesta sua nova condição que escreve a Arte de Contemplação, a parte teórica e intelectual da mística luliana, que se completa com a faceta afectiva, na linha do sufismo e franciscanismo, presente no Livro do Amigo e do Amado.
4. A alta espiritualidade de Blanquerna, a perfeição exemplar da sua vida, vai culminar na vivência do amor divino, que atinge a sua expressão cabal e autêntica no Livro do Amigo e do Amado. O livro estende-se por 365 (nalgumas edições 366) versículos, ou aforismos – um por cada dia do ano - de significação heterogénea, mas com a temática constante da efusão sentimental mútua entre o amigo (a pessoa humana) e o Amado (a essência divina).
Embora não seja a reprodução de uma obra árabe, tal como LLull e Blanquerna o indicam, é evidente que se trata de um breviário de contemplação, formado a partir de fábulas doutrinais correntes no sufismo. Nestas, a união do elemento místico e poético tem como fonte de inspiração constante a, também franciscana, imanência de Deus na Natureza: «25.Cantavam os pássaros a alva e despertou-se o amigo, que é a alva; e os pássaros acabaram o seu canto e o amigo morreu na alva pelo Amado.// 26. Cantava o pássaro no vergel do Amado. Veio o amigo e disse ao pássaro: "Se não nos entendemos pela linguagem, entendemo-nos pelo amor; porque no teu canto se representa aos meus olhos o meu Amado".» Amigo e Amado comunicam entre si intimamente desde o primeiro encontro, e através do seu diálogo, imitado dos trovadores, é possível rastear as diversas etapas da vida espiritual.
O amigo aspira a penetrar os segredos e obras do Amado, cuja perfeição é alimento constante para o seu amor. Este amor, mais de carácter erótico que agápico, exige o abandono dos cuidados do mundo, o choro, sofrimento, e mesmo martírio do amigo, até que lhe permita a sua fusão com o Amado: «O amor os mistura como a água se mistura com o vinho».
A escrita deste compêndio do amor místico caracteriza-se por um ritmo e tom líricos, um estilo lacónico, bem diferentes da narração em que se insere. Representa, então, uma ruptura com o modelo inicial personificado em Blanquerna-escritor, e pelo exaltar de uma sabedoria que não se encontra nos livros, mas no Grande Livro que é a Natureza, conduz ao auge do pensamento filosófico luliano.
5. A arte de LLull abre caminho à infiltração do platonismo medieval - o de Stº. Agostinho, e a versão dinâmica de Erígena - no escolasticismo reinante. Embora seja uma arte «lógica», e condene todas as formas de magia, terá seguramente sofrido a influencia do pensamento cabalístico que, ao seu tempo, se desenvolve em Espanha.
Justifica-se que, pela preponderância dada ao amor, e pela afirmação de ter encontrado uma «chave» e uma «arte universal», a teoria luliana, venha a interessar Nicolau de Cusa, Ficino, Paracelso, e a ser aceite por Pico della Mirandola. A sua reinterpretação acaba por integrá-la nas formulações hermético-Cabalistas cristianizadas do Renascimento.
Considera Frances Yates que, nesta atmosfera, o lulismo adquire o sabor oculto e mágico daquela filosofia, tornando-se explícita a sua relação com a alquimia, vindo a influenciar magos como Cornélio Agripa e Giordano Bruno. No entanto, a sua importância ultrapassa o mero revivalismo da magia, e permanece pelos séculos seguintes, servindo de apoio à constante busca de um método empreendida por Bacon e Descartes, chegando mesmo a atrair um Leibniz.
Ramon Llull era conhecido em Portugal, pois pelo menos uma das suas obras aparece referida nos Index dos livros e autores proibidos (1559 e 1561), e no Catálogo dos Livros Defesos (1581) são banidos «Diálogos da união d'alma com Deos, em qualquer lingoa.» Está, assim, na companhia de Dante e Petrarca, Colona, Erasmo, Lutero ou Agripa, mas também de Bernardim Ribeiro, Gil Vicente, João de Barros.
O Livro do Amigo e do Amado exige um esforço de decifração, na medida em que se insinua como fundamental para o entendimento de toda a lírica amorosa portuguesa até finais de seiscentos. Mas vale igualmente por si, pois enquanto um belo conjunto de pequenos poemas em prosa, não deixará certamente de seduzir o leitor de hoje.
Helena Barbas [O Independente, 6 de Abril de 1990, III p.54]
Livro do Amigo e do Amado - Ramon Llull - Trad. Dimíter Anguélov - Cotovia, 1990
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