Nuno Júdice - O Anjo da Tempestade


 
 
Nuno Júdice

O Anjo da Tempestade

Um romance caleidoscópico, irónico e fascinante
 
   O tom do novo livro de Nuno Júdice evoca o Jacques Le Fataliste de Diderot, Transparências de Nabokov, e algum Saramago. Tudo tingido por um humor finíssimo e inteligente que mantém o leitor com o sorriso nos lábios (cortado por algumas gargalhadas) do princípio ao fim. O enredo da história – que pode ser um romance, uma (auto)biografia, ou um exercício teórico-prático filosófico-sociológico-literário - é muito simples, e apresentado logo na primeira página: «Aí por meados do século dezanove, num cerro do Algarve, a meio caminho entre o mar e a serra de Monchique, um tio-bisavô meu foi assassinado. Imagino que tenha sido no Verão, numa tarde do mês de Agosto mais quente desse século;». Iria levar o dote à noiva e terá recebido um tiro de arcabuz. Mas a palavra-chave aqui é «imagino».
 
   Há um eu-narrador que vai explorar esse pseudo-episódio da sua pseudo-infância, e as suas presentes memórias dele, para lhe tentar esgotar todas as alternativas de soluções narrativas possíveis: o tiro de arcabuz pode, ou não, ter sido acompanhado de uma paulada, ou pode ter sido um tiro de pistola, ou um raio, um anjo, um meteorito; o assassínio pode ter sido suicídio; a vítima pode não o ter sido, e até pode nem sequer ter havido vítima. «Com a liberdade que me é dada para conduzir os meus personagens, tenho ainda a possibilidade de o desviar desse encontro de que irá resultar a sua morte. No entanto, se o fizesse, estaria a contrariar esse ponto de partida que é o meu conhecimento de que, algures por meio do século dezanove, um tio-bisavô meu foi assassinado. Posso eu próprio ir ao encontro dele, durante a sua viagem; e pedir-lhe que não prossiga caminho…» (pág.151). Este caso é o leit-motiv que inspira o narrador para associar factos e ficções aparentemente in-associáveis: «Embora a caveira que encontrei no ossuário, com uma racha que pressuporia o golpe de misericórdia do assassino, me obrigue a pensar que há algo nos mortos que permanece e me faz pensar que eles nos acompanham, também pode acontecer que essa cena tenha nascido do Hamlet, e que eu tenha confundido a caveira do Yorick com a do meu tio-bisavô;» (pág.74).
 
   Apesar de todas as reiterações, de cada vez que uma ocorrência é retomada, já se lhe mudaram os motivos; os eventos apresentados como sucessos transformam-se em ilusões, suspeitas, e vice-versa. Há uma garantia – um pequeno caderno em que tudo foi apontado, que também ele desaparece (e reaparece?). As personagens trocam de comportamentos e papéis, fundem-se umas nas outras, saltam da música, de telas para a narrativa e da narrativa para quadros (incluídos no texto): «O problema é que a donzela da Ópera estaria vestida; e essa outra que a morte tem pela frente está nua, ou semi-nua, em função dos critérios de pudor da época em que a pintura foi feita, como é o caso da bela Rosina de Antoine Wiertz, pintada em mil oitocentos e quarenta e sete, no mesmo ano em que Marx e Engels fizeram o «Manifesto Comunista» onde não há nenhuma donzela nua. Porém, ao verificar a concordância de datas, concluo que nada sucede por acaso…» (pág.94).
 
   Num delírio caleidoscópico, sem uma quebra de ritmo, e sempre em crescendo, joga-se também com a caracterização das personagens – apresenta-se a leitura dos gestos de acordo com códigos evidentes, para depois os desmentir e desmontar. E a primeira vítima de todo este processo, é o próprio narrador – eu e personagem – que salta da ficção para o real numa fotografia que atesta Nuno Júdice ao lado de Sartre em 1975.
 
   De mistura com a evocação do antepassado, o narrador fala de amores frustrados, e desencontros a todos os níveis, contaminando o seu percurso político e revolucionário. Provam-se as discrepâncias entre «O Capital» de Marx e o «Conceito de Angustia» de Kierkegaard, entre o real colectivo e as pequenas tragédias individuais, a transformar a possível auto crítica marxista num romance de amor e morte. E o grande elo de ligação entre tudo é o prazer do acto de narrar, tão vital para o homem como o igual prazer de ouvir bem contar histórias.
 
Helena Barbas [Expresso, 2004]
 

O Anjo da Tempestade - Nuno Júdice -Dom Quixote, 2004