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Natália Correia - Poesia Completa (redirected from Nat�lia Correia - Poesia Completa)

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Natália Correia

Poesia Completa

Lapidar a matéria da palavra
 
   Como epígrafe à «Ode do Agravo Geral» incluída em Dimensão Encontrada (1957), diz Natália: «O valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas./ O ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso.» E aqui chegou a sua obra.
 
   Passados sete anos sobre a sua morte, publicam-se neste volume O Sol das Noites e o Luar dos Dias, mais alguns inéditos, coligidos e em grande parte ainda revistos pela poeta. Seiscentas páginas de versos de tremenda qualidade a merecer apenas três linhas nas usuais Histórias da Literatura, e sem cabimento nos ensaios mais recentes. Há algo de errado neste reino da poesia.
 
   Natália sofre de uma doença retórica: os seus poemas estão fora das modas. O seu é o estilo asiático, o bombástico próximo do Sublime, mas escreve em tempo de brevidades, de elogios do silêncio. Sabe-o, e defende-o com a sua implacável ironia no prefácio quando refere uma «ajuda» ao seu primeiro livro, Rio de Nuvens: «a escolha feita pelo poeta hoje esquecido mas então encartado e amigo da família que (...) expurgou os poemas que me eram mais caros por considerá-los metafísicos e de grandiloquência dramática (...). Em abono da coerência do seleccionador, autor do respectivo prefácio em que exagera a tónica de passar por meu mestre, direi que era seu vade mecum a arte poética postulante da poesia quase sem palavras. Princípio que aplicou ao exame dos meus poemas. Apenas já então me era intolerável aceitar que o valor da poesia consistisse na procura de se abolir no silêncio pois já intuía que a palavra vinha à poesia para tornar audível o que fala no silêncio.» Também tentou controlar a sua própria «gana cirúrgica» para não desfigurar versos mais conhecidos, e não sonegar «aos leitores interessados em seguirem essa evolução ou involução a que se dá o nome de obra poética, a autenticidade da sua génese e colocação no poiétikós que aqui se desenrola» (pág. 33). E desenrola-nos em três páginas o seu percurso, que é antecedido por outras tantas igualmente densas a atestar a sua poética.
 
   Discute então e sintetiza as principais possibilidades de enfrentar a poesia, resumíveis a duas: a platónica e a aristotélica.
 
   Condena a primeira, a entender a poesia como inspirada e logo exterior ao homem: «Porque, a ser assim, o poeta toma-se por um ser excepcional. O que, dando lugar à sua arrogância, o expõe ao ridículo de não ter razão para a ostentar visto que os versos que faz nem sequer são dele mas de uma entidade sobrenatural que fala pela sua boca, reduzindo-o à função de microfone. Ora um microfone vaidoso é um absurdo hilariante...» (pág. 29); depois há perspectiva oposta, em que a linguagem é um instrumento a ser trabalhado pelo homem: «seria tentada a enredar-me no fio que uma nova ciência nos estende para nos conduzir ao postulado de uma conexão cósmica da poesia com uma linguagem englobante da música e das matemáticas em que está estruturado o Universo. Nas matemáticas, o número de sílabas e de acentos regulado nas formas métricas. Na música, não só a simples melodia produzida por esse arranjo métrico mas a que na lógica encantatória da linguagem poética é essencial ao poema (Mallarmé). É nesta cosmicidade do idioma poético que surge a tentação remissiva que nos convida a revisitar Velhos Tratados Espirituais em que cada letra do alfabeto corresponde a um número numa relação significativa de um constituinte do Universo». Diz ser esta última a sua alternativa, irmã das combinatórias cabalísticas e simbólicas, mas define-a como «mais idêntica a um puro relâmpago...» aproximando-a da revelação, fundindo ambas. Por isso nunca abandona aliterações e rimas, as experiências prosódicas e estróficas. A pensar assim, a escrever assim, Natália não cabe em lado nenhum.
 
    Mas até os tratados cartesianos vão abrindo as portas ao novo. Saúdam Jorge de Sena e as Metamorfoses (1963) como o momento de mestria no uso dos importados mecanismos modernistas - as meditações poéticas, o monólogo dramático, a citação. «Cantos de Safo Para Átis», que Natália inclui em Retratos, data de 1955: «Espero-a num silêncio de margem/ enfeitiçada do rio e da viagem./ E na noite mais densa e mais acesa/ onde aranhas de luz tecem um corpo/ para a sua alma de princesa.// Desfez-te a brisa em meu cabelo agreste/ Átis de corpo vegetal/ perfumado e silvestre./ Lírio florido na mão que te procura/ com delírios nos olhos/ mordidos na cintura.// Como pombas/ seus seios vêm pousar nas minhas mãos./ Estremecem e partem./ Como pombas minhas mãos os perseguem...» (pág. 87). Quanto à citação, pode absorver versos incrustando-os no seu discurso de tal modo que, num caso, torna D. Dinis definitivamente seu: «Quero eu à maneira de provençal/ como da flor manda o código incivil...» («AB LO TEMPS QUE FAI REFRESCHAR LO SEGLE», pág. 385); ou insere-lhe as ideias e metáforas alheias enganando-nos premeditadamente a lê-las como «surrealizantes», agora com San Juan de La Cruz: «porque o amarelo filipino/ da paisagem é um místico trópico/ de noche oscura que busca o céu...» («Terra Filosofal», pág. 395). A sua poesia torna-se pois enciclopédica, reconduzindo a citação à «maniera» seiscentista e, sem notas, furta-se a leituras fáceis, esquiva-se a ensaios e teses.
 
   Também estava fora de moda e de «género», porque pouco «feminina», a sua máscara pública. A telúrica figura televisiva, de gestualidade exagerada; a grande dama no «salon» iluminista no Botequim; as respostas desbragadas ao insulto decoroso burguês; a pose histriónica de vate renascentista, a pena numa mão, a espada na outra, a descobrir que ambas se haviam fundido numa única e mesma arma - vidé as «Cantigas de Risadilha» do período parlamentar. Arma agora usada por todos, a degradarem-lhe a «Língua Mater Dolorosa»: «Tu que foste do Lácio a flor do pinho/ dos trovadores a leda a bem talhada/.../ de Luís Vaz a chama joalhada// tu o casulo o vaso o ventre o ninho/ e que sôbolos rios pendurada/ foste a harpa lunar do peregrino/ tu que depois de ti não há mais nada,/ eis-te bôbo da corja coribântica;/ A canalha apedreja-te a semântica/ e os teus verbos feridos vão de maca.// Já na glote és cascalho és malho és míngua,/ de brisa barco e bronze foste a língua;/ língua serás ainda... mas de vaca» (pág. 405). Natália prova que no século XX os grandes ideais são ridículos. E assume a caricatura para os fazer passar: a única maneira de ser ouvida porque sabe que está só e sem interlocutores.
 
   De permeio com poemas surgem textos em prosa onde se desvenda uma filosofia. Natália fala-nos de experiências políticas: «Pois a minha revolução era isso mesmo. A impossibilidade moral de fazer aos sicários as canalhices que eles nos faziam» (pág. 413); e lamenta em verso: «Recém-nascida apenas deste em cabra/ Ó Liberdade! Não sei como isto acaba,/ não sei como acabar este soneto.» («Já as Primeiras Cousas são chegadas», pág. 418). De ideias religiosas: «Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais importante que os deuses existirem é acreditarmos neles. E mesmo que existindo, nos ignorem, não sejamos nós a ignorar a sua autoridade primitiva...» (pág. 503); e crenças: «Creio nos anjos que andam pelo mundo,/ Creio na Deusa com olhos de diamantes...» («Poesia: Ó Véspera do Prodígio!, V, pág. 616.
 
   Da pose e máscaras sobram vagas memórias. Ficou um pensamento e a matéria lapidada da poesia pura.
 
Helena Barbas [Expresso, 2000]
 

Poesia Completa - Natália Correia - Dom Quixote, 1999

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