Mário Cláudio - Gémeos


 

Mário Cláudio 


 Gémeos 


 Uma Lolita de Goya num muito elaborado e subtil desafio ao leitor

 

  

   Embora Mário Cláudio nos diga que este seu livro encerra uma trilogia - a das constelações, inaugurada com Ursa Maior, a que se seguiu Oríon -, Gémeos poder-se-ia enquadrar melhor com outros textos da sua produção anterior: Amadeo, Guilhermina, ou Rosa, por exemplo.

Aqui, o herói será Dom Francisco, um pintor já velho e senescente, cujos delírios pelo tenebroso da decadência e da surdez nos faz seguir de maneira recortada, por uma via tortuosa, cheia de alçapões e camadas sobrepostas.

 

   Somos levados a acompanhar as relações deste velho pintor com todos os que o cercam. Primeiro, vemo-lo a espreitar a sua jovem aluna e protegida pré-adolescente, Rosarito, num início de história cuja intriga invoca de imediato o ambiente da Lolita de Nabokov. Depois, os devaneios lúbricos são substituídos pela relação com um cão rafeiro, Dom Beltrán, que ele adopta e a sua pupila se entretém a maltratar às escondidas - chega a enviar-lho para um manicómio, e Dom Francisco consegue recuperá-lo semimorto. Há ainda um servo tão fiel quanto o perdigueiro, Simón, com funções de jardineiro, a quem o contacto com a terra acaba por enlouquecer, e se suicida.

 

   Inicialmente, o tempo e o espaço são vagos, uma cronologia biológica ou sideral, marcada pelas celebrações religiosas (flagelações na Quaresma, pág. 40), que se redefine com alguns parcos acontecimentos históricos (uma guerra em 1811, pág. 75). Por sua vez, o narrador distribui-se por vários «eus», da omnisciência à exclusividade do herói, jogando ainda com os tempos da construção verbal. Tudo isto contribui para a construção de uma atmosfera mais própria do campo do onírico, de um mítico simultaneamente estético e escabroso.

 

   Este universo de «terribilità» é gradualmente elaborado a partir de imagens muito fortes: «E diante de Rosarito, muito mais tarde, sofrendo o irresistível ímpeto com que se ia evadindo a menina do cárcere a que a condenara, erguera-se-lhe de súbito, a flanquear uma das portas do piso inferior da casa da Quinta, a envergadura de Saturno omnipotente. «O velho deus escancarava os olhos sanguinolentos, e toda a monstruosidade do Planeta se quedava neles reflectida. E apertava entre os dedos o corpo hirto de Rosarito, pronto a esquartejá-la antes de a levar à boca, impedindo-a de conceber os que a votassem a uma sorte igual, ínfimos números da eterna procissão dos que nascem para matar, produzindo aqueles que na sua hora haverão de os assassinar também, de tudo não restando mais do que o amarelado sulco de soro e pus» (págs. 44-45).

 

   E é a força das imagens que as denuncia como mais um jogo/brincadeira do autor, que as terá ido buscar à pintura de Goya. Assim, transforma-se a intriga romanesca numa biografia destilada a partir da revisitação da obra pictórica de Don Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828). Abordam-se, em particular, os anos finais da sua vida, quando em 1819 se retira, com a sua companheira Leocádia, para a «Quinta del Sordo» - do surdo - cujas paredes encheu com as famosas «pinturas negras». Entre elas - antes da destruição do edifício - havia o «Saturno devorando os seus filhos», matriz da metáfora acima, agora no Museu do Prado. Também Rosarito, a actriz, como outras personagens e cenas que vão surgindo, saltaram da tela para o papel, dialogando entre si e ilustrando, em prosa, os pesadelos que assombraram o mestre.

 

 

   Com esta estratégia, Mário Cláudio ultrapassou o processo da ekphrasis - a descrição do fabrico de uma obra de arte - e transportou para o espaço do romance, de forma extremamente original, a proposta modernista da meditação poética sobre uma obra de arte inaugurada com as Metamorfoses de Jorge de Sena.

 

Helena Barbas [Expresso, 2004]

  


  Gémeos - Mário Cláudio - Dom Quixote, Lisboa (2004)