Marguerite Duras
A Amante Inglesa
Um romance que se pretende policial a ser criado pelo leitor
«Tudo o que aqui é dito é gravado. Está a começar a fazer-se um livro sobre o crime de Viorne.» (p.9). Começa assim este estranho romance (?) policial (?) que coloca um duplo desafio ao leitor. Não o descobrir o criminoso, nem a vítima, mas elaborar o «inquérito» a partir das «gravações» que são reproduzidas tal qual: «...a fita é cega e nada se vê através do que diz. É portanto você quem deve fazer surgir o livro. Quando a noite de 13 de Abril tiver adquirido, graças à sua narração, o seu próprio volume, o seu próprio espaço, poderemos deixar a fita relatar o que memorizou e o leitor substitui-lo-á, a si, na leitura.» (p.9). Autonomia fictícia porque, como sempre, o leitor é manipulado.
Ao longo do texto são lançadas informações, pistas ou desvios, que determinam a organização dos dados. À semelhança do rato de Laborit, o leitor é sucessiva e discretamente estimulado a seguir pelo labirinto de uma memória registada «objectivamente», condicionado a escolher por entre os vestígios de um passado insuportável. As gravações, fragmentadas, tornam-se metáfora do próprio crime: um corpo esquartejado e distribuído por diversos comboios, que levamos pedaços para espaços distantes. E metáfora ainda do próprio acto de leitura: tal como a polícia, o leitor dever recuperar os pedaços e reuni-los num todo, re-transformá-los num organismo.
Viorne é uma pequena cidade francesa onde, por «acaso», se cruzam as principais linhas ferroviárias do país. O pequeno espaço é, portanto, o gigantesco «coração» de um sistema circulatório, que alarga a metáfora do corpo à geografia.
É pela cidade que começa a descoberta do crime: a polícia encontrou o sentido do processo de fragmentação da vítima, mas não atingiu o sentido total, por falta da sua cabeça. Este detalhe macabro deixa o último «sentido» pendente da palavra da assassina, uma «louca», cujo depoimento foi aceite em auto-incriminação.
Constrói-se um paradoxo sobre o valor do discurso - verdadeiro ou falso, são ou louco - questiona-se, indirectamente a verdade judicial, e abertamente a ficcional. A crença nas palavras é um jogo, que se pode ou não levar a sério, tal como o título: dado pela homofonia francesa com o nome de uma planta - «la menthe anglaise» (a hortelã-pimenta inglesa) - que pode, ou não, fazer sentido.
Helena Barbas [O Independente, 21 de Abril de 1989, III p.36]
A Amante Inglesa - Marguerite Duras, trad. de Mª. Filipa Palma Ferreira, Europa-América, Lisboa (1989)
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