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Luigi Pirandello - Um, Ninguém e Cem Mil

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 5 months ago
 
Luigi Pirandello

Um, Ninguém e Cem Mil


Um espantoso romance de um grande senhor do teatro 
 
   Luigi Pirandello (1867-1936), siciliano, estudou os ­clássicos na universidade de Roma (onde vem a ensinar entre­ 1897 e 1924), e doutorou-se em filosofia em Bona (1891).­ Data desta sua última estadia o interesse pelo Idealismo ­Alemão que ecoa pela sua obra. Filósofo e ensaísta, poeta e ­prosador, é especialmente como dramaturgo que Pirandello vem­ a alcançar fama mundial, chegando a receber o Nobel da Literatura em 1934. 
 
   Edita o primeiro livro de versos em 1899, mas a sua produção ­poética esgota-se por 1912. Entretanto publica dois ensaios­ teóricos Arte e Scienza e L'umorismo (1908) – onde ­procura demarcar-se da perspectiva de Benedetto Croce. ­
 
   Embora o grosso da sua produção se concentre na prosa, é na ­aventura do teatro que atingiu a sua verdadeira dimensão, ­tendo sido despertado para o drama nos anos que marcam o­ início da 1ª. Grande Guerra. Logo nas primeiras peças se ­evidencia a sua visão entre triste e irónica do mundo e do ­indivíduo, a curiosidade pelas relações entre a aparência e ­o real, a busca da lucidez, que se tornam exemplares na­ maturidade. Cosi é (se vi pare) e Il piacere dell'onnestà ­(1916) marcam o começo da sua projecção teatral que, num­ percurso harmonioso e fecundo, atinge o auge em 1922, com o ­famoso Sei personaggi in cerca d'autore, e mais duas outras ­peças: Enrico IV e Vestire gli Ignudi. Após L'uomo dal fiore in bocca e La vita che ti diedi (1923), o período, que ­corresponde à obtenção do reconhecimento internacional, ­encerra-se em 1924 com Ciascuno a suo modo
 
   Contemporâneo de ­Brecht, Luigi Pirandello torna-se um dos dramaturgos ­europeus mais criticados, discutidos e aplaudidos. Desacordos com o governo fascista italiano, de quem fora ­inicialmente apoiante, levam-no de novo à Alemanha, agora a­ Berlim, e depois a Paris. Desta última fase datam as ­experiências com temas míticos La Nuova colonia (1928) e­ Lazzaro (1929), além de Questa sera si recita a soggeto ­(1930), a conclusão teórica da prática do «teatro dentro do ­teatro» que iniciara em 1922. Non si sa come, de 1935, é a última peça a subir à cena.
 
   Pirandello abandona o drama burgês, último refúgio da­ tradição naturalista, recusa a ideia de que o teatro deve servir de espelho à sociedade, e destrói a ilusão de um ­acordo perfeito entre o real e o imaginário. Agora é a ­própria sociedade que é convocada ao palco, onde exibe a sua­ hipocrisia, a sua violência, e mesmo absurdo: a realidade é ­questionada perante um público que também participa no ­espectáculo.
 
   Entre Strindberg e Brecht, distancia-se do primeiro pela sua ternura pelo humano, e do segundo pelo seu ­individualismo. O reflectir sobre a condição humana, as suas­ eternas dúvidas, alia-se à descoberta trágica de uma verdade ­transcendente, incompatível com a materialidade da civilização, que repassam igualmente os romances e novelas.
 
   O seu interesse pela prosa – suscitado pela necessidade de ­fazer frente a problemas financeiros, após algumas ­tentativas, tem como consequência apreciável Il fu Mattias ­Pascal (1904) onde, pela primeira vez, uma personagem é ­concebida em termos diferentes do «verismo» e realismo­ em voga, herdados dos naturalistas franceses. O tópico da ­dissolução da personalidade, aperfeiçoado numa série de­ novelas e contos entre 1910-1915, vem a ser explorado com o­ melhor dos efeitos em Uno, Nessuno e Centomilla (1924) agora ­traduzido para português.
 
   É a partir daquele tema - fundamento da poética da ­alteridade Modernista - que se desenvolve a história de­ Vitangelo Moscarda. Pirandello utiliza, então, a voz ­dramática - multiplicada em personagens no seu drama – para ­exprimir o conflito de um «eu» dividido, que busca situar-se face ao mundo enquanto lugar de diálogo com as suas variadas ­- cem mil - facetas.
 
   A fragmentação do «eu» de Vitangelo é ­desencadeada pelo comentário de sua mulher, Dida, sobre um ­pequeno defeito no seu nariz: «Tinha vinte e oito anos e, ­até então, sempre considerara o meu nariz, se não propriamente belo, pelo menos muito decente, como todas as ­outras partes da minha pessoa... A descoberta súbita e ­inesperada daquele defeito irritou-me como um castigo ­imerecido» (p.11). Este pormenor, aparentemente ­insignificante, leva a um questionar do sujeito sobre si próprio, o seu mundo, pois o nariz não só é metonímia de todo o­ corpo, como ainda da imagem desse corpo, e da relação que, através dela, se estabelece com os outros e o real.
 
   A nível psíquico, o «eu» foi agredido no seu narcisismo ­primário, uma zona frágil e profunda - formada no momento a ­que Lacan chama de «estádio do espelho»: «O pequeno homem, ­numa idade em que é por um tempo curto, mas por um tempo­ ainda, ultrapassado em inteligência instrumental pelo ­chimpanzé, reconhece, contudo, já como tal, a sua imagem no ­espelho». É a partir deste reconhecimento que experimenta a­ sua relação com o corpo, os movimentos, o cenário em que se­ move, e por fim os outros - com quem aprende a ­identificar-se, e depois mais tarde, com o auxílio da­ linguagem, a distinguir-se.
 
   Assim, a identidade de Vitangelo é ameaçada, e a sua segurança -­ em si e no que vê - destruída, levando consigo os contornos ­do seu mundo. A irritação de verificar que não é para os ­outros «aquele que, até então, dentro de si pensara ser» (p.15), leva-o a tentar descobrir quem é, ele e o «outro», ­aquele corpo estranho que o seu espírito habita: «O meu ­drama depressa se complicou com a descoberta dos cem mil ­Moscarda que eu era não só para os outros mas também para ­mim, e todos com este único nome de Moscarda, feio até à ­crueldade, todos dentro deste meu pobre corpo que era também ­um só, um e nenhum, infelizmente, se o colocavam diante do ­espelho e o olhava, fixo e imóvel, nos olhos, abolindo sentimento e vontade.» (p.21-22).
 
   O seu espírito assinala-se como distinto daquele corpo ­multifacetado, cuja imagem, fragmentada, lhe é devolvida ­pelo olhar dos outros. O «eu» propõe-se desvendar a sua­ verdadeira identidade e, simultaneamente, divertir-se, estilhaçando o reflexo que esses outros têm de si.
 
   O real é, assim, entendido como o resultado de uma ­construção, sempre individual e nunca coincidente. Nela se ­baseia a estrutura do sujeito e todos os contactos humanos: ­do «eu» com o «tu» (no amor), com os outros (família, sociedade), a civilização, tendo por exemplo máximo a própria História.
 
   Submetido à pluralidade, ao tempo e à ­mudança, este real desagrega-se tanto mais facilmente quanto ­as relações são estabelecidas a partir das palavras: «Palavras que cada um percebe e repete à sua maneira. Pois, ­mas é assim que se formam as chamadas opiniões correntes. E ­ai de quem, um belo dia se encontre marcado por uma dessas ­palavras que toda a gente repete. Usurário, por exemplo. Por­ exemplo, Louco.» (p.88).
 
   Vitangelo parte numa demanda que­ tem por objectivo mais imediato o libertar-se da etiqueta­ de usurário, herdada de seu pai. Para este percurso convida­ o leitor: «Enfim, vocês querem realmente fazer essa­ experiência comigo? Sim ou não? Querem entrar no medonho ­jogo que existe sob a pacífica natureza das relações ­quotidianas, dessas relações que lhes parecem as mais vulgares e normais, e sob a calma aparência da chamada ­realidade das coisas? O mesmo jogo, santo Deus, que porém ­vos faz enraivecer de cinco em cinco minutos e gritar para o­ amigo que está  ao vosso lado: «Desculpa, mas é possível que não vejas isto? És cego? E ele não, não vê, porque ele vê outra coisa, quando vocês acham que ele tem de ver o mesmo e tal como vos aparece. Mas ­ele vê como a ele lhe parece e por conseguinte, na sua­ opinião, os cegos são vocês.» (p.80).
 
   E o herói, um «banqueiro anarquista» com laivos franciscanos, conduz o ­leitor numa viagem pelo real, pelos «clichés» do quotidiano­ que são, sucessiva e divertidamente, desmontados, vindo a ­exibir, por vezes, dimensões filosóficas, linguísticas, ­psicanalíticas, e mesmo estéticas, perfeitamente ­inesperadas.
 
   No que respeita ao aspecto editorial, há dois pequenos ­reparos a fazer: à revisão pouco cuidada de Wanda Ramos, que ­tira brilho à tradução; e à interessante «Nota de ­Apresentação» de Gisela Moniz: «je est un autre» é de Rimbaud e não Baudelaire (era o outro).
 
Helena Barbas [O Independente, 18 de Agosto de 1989, III p.37]
 

Um, Ninguém e Cem Mil - Luigi Pirandello, trad. Maria ­Jorge Villar de Figueiredo, Presença, Lisboa (­1989)

 

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