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José Saramago - História do Cerco de Lisboa

Page history last edited by Helena Barbas 14 years, 10 months ago
 
José Saramago 

História do Cerco de Lisboa 


Um pequeno «não» que transforma séculos de História
  
   Já foi bastamente divulgado o tema central do enredo deste ­romance: o revisor de provas Raimundo Silva, ­intencionalmente, apõe um NÃO fraudulento a um texto cientifico sobre o cerco de D. Afonso Henriques a Lisboa.­ Este gesto está na base da contratação de uma chefe de revisores - Maria Sara - e do desafio que esta lança a ­Raimundo: rescrever o texto histórico a partir da ­perspectiva instaurada pela palavra que acrescentou.
 
   De novo­ uma mulher se apresenta como «musa» mas, cheia de sentido ­prático, quase obriga o homem à criação de uma obra, que é ­também o assumir da sua individualidade. Entre estas duas­ personagens vai desenvolver-se uma relação amorosa que tem o­ seu paralelo especular na ligação entre a barregã Ouroana e ­o soldado Mogueime.
 
   A conquista da cidade serve de metáfora à conquista das ­mulheres recuperando-se, por esta via, a associação ­tradicional, não apenas vocabular, entre o amor e a guerra: «Não é preciso ser-se revisor para saber isso, uma simples ­licenciada não o ignora, Parece que estamos em guerra, e é ­guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro e é cercado ­por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os nossos, o amor será não haver mais ­barreiras, o amor é o fim do cerco.» (p.330).
  
   Naturalmente encontra-se O Memorial do Convento como ponto ­de referência, pela preponderância das figuras femininas, ­pelas associações com a memória colectiva, na invocação do ­passado como termo de comparação ao olhar crítico sobre o presente. Em ambos se levanta ainda o problema da veracidade ­e cientificidade da História, embora o seu autor não os ­considere como romances históricos: «O Memorial não é um ­romance histórico, e a História do Cerco de Lisboa é ainda ­menos histórico que o Memorial. Tem é uma história que se ­passa entre dois planos temporais: o dia de hoje e o tempo ­deste cerco...» (Ler, nº.6, p.19).
 
   O jogo temporal, que Saramago considera assumir especial­ importância neste texto (J.L., 18.04.89) é, de facto, mais ­cerrado. Aparece como uma manifestação do desejo de exibir­em simultâneo dois ou mais discursos o que, naturalmente, se torna impossível pela linearidade da linguagem, ela própria ­sujeita ao tempo. Deste desejo decorre uma estratégia de ­maior intromissão do narrador, cujas falas, ironicamente, inserem as anacronias, continuando ainda a chamar a atenção ­para as incongruências do discurso normalizado que desmonta ­e subverte.
 
   Todavia, por aqui se ficam as semelhanças entre os dois­ romances. A integração da(s) História(s) na(s) história(s)­ não alcança a força nem atinge o equilíbrio conseguido no Memorial. Há claramente uma primeira parte mais descritiva e ­lenta - quando são introduzidos os dados sobre o cerco – é ­que contrasta com uma aceleração do ritmo final - os­ momentos de encontro entre as personagens, de narração dos ­relacionamentos humanos particulares, dos gestos e situações ­para além das palavras, onde, mais do que nos movimentos ­colectivos, Saramago é mestre e senhor.
 
   Também as mulheres ­não alcançam o fulgor de Blimunda. Em Ouroana e Maria Sara a­ implicação sobrenatural e profética é reduzida a mera intuição feminina, enquanto a dimensão cósmica apenas se ­vislumbra na sacralização dos momentos ridículos do­ quotidiano. Um grande romance que, no entanto, não é o ­melhor romance de José Saramago.
 
Helena Barbas [O Independente, 4 de Agosto de 1989, III p.34] - versão integral 
 

História do Cerco de Lisboa - José Saramago, ­Caminho, Lisboa (1988)

 

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