José Saramago
História do Cerco de Lisboa
Um pequeno «não» que transforma séculos de História
Já foi bastamente divulgado o tema central do enredo deste romance: o revisor de provas Raimundo Silva, intencionalmente, apõe um NÃO fraudulento a um texto cientifico sobre o cerco de D. Afonso Henriques a Lisboa. Este gesto está na base da contratação de uma chefe de revisores - Maria Sara - e do desafio que esta lança a Raimundo: rescrever o texto histórico a partir da perspectiva instaurada pela palavra que acrescentou.
De novo uma mulher se apresenta como «musa» mas, cheia de sentido prático, quase obriga o homem à criação de uma obra, que é também o assumir da sua individualidade. Entre estas duas personagens vai desenvolver-se uma relação amorosa que tem o seu paralelo especular na ligação entre a barregã Ouroana e o soldado Mogueime.
A conquista da cidade serve de metáfora à conquista das mulheres recuperando-se, por esta via, a associação tradicional, não apenas vocabular, entre o amor e a guerra: «Não é preciso ser-se revisor para saber isso, uma simples licenciada não o ignora, Parece que estamos em guerra, e é guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os nossos, o amor será não haver mais barreiras, o amor é o fim do cerco.» (p.330).
Naturalmente encontra-se O Memorial do Convento como ponto de referência, pela preponderância das figuras femininas, pelas associações com a memória colectiva, na invocação do passado como termo de comparação ao olhar crítico sobre o presente. Em ambos se levanta ainda o problema da veracidade e cientificidade da História, embora o seu autor não os considere como romances históricos: «O Memorial não é um romance histórico, e a História do Cerco de Lisboa é ainda menos histórico que o Memorial. Tem é uma história que se passa entre dois planos temporais: o dia de hoje e o tempo deste cerco...» (Ler, nº.6, p.19).
O jogo temporal, que Saramago considera assumir especial importância neste texto (J.L., 18.04.89) é, de facto, mais cerrado. Aparece como uma manifestação do desejo de exibirem simultâneo dois ou mais discursos o que, naturalmente, se torna impossível pela linearidade da linguagem, ela própria sujeita ao tempo. Deste desejo decorre uma estratégia de maior intromissão do narrador, cujas falas, ironicamente, inserem as anacronias, continuando ainda a chamar a atenção para as incongruências do discurso normalizado que desmonta e subverte.
Todavia, por aqui se ficam as semelhanças entre os dois romances. A integração da(s) História(s) na(s) história(s) não alcança a força nem atinge o equilíbrio conseguido no Memorial. Há claramente uma primeira parte mais descritiva e lenta - quando são introduzidos os dados sobre o cerco – é que contrasta com uma aceleração do ritmo final - os momentos de encontro entre as personagens, de narração dos relacionamentos humanos particulares, dos gestos e situações para além das palavras, onde, mais do que nos movimentos colectivos, Saramago é mestre e senhor.
Também as mulheres não alcançam o fulgor de Blimunda. Em Ouroana e Maria Sara a implicação sobrenatural e profética é reduzida a mera intuição feminina, enquanto a dimensão cósmica apenas se vislumbra na sacralização dos momentos ridículos do quotidiano. Um grande romance que, no entanto, não é o melhor romance de José Saramago.
Helena Barbas [O Independente, 4 de Agosto de 1989, III p.34] - versão integral
História do Cerco de Lisboa - José Saramago, Caminho, Lisboa (1988)
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