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José Afonso Furtado - Os Livros e as Leituras

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José Afonso Furtado


Os Livros e as Leituras - Novas Ecologias da Informação


A vingança de Hermes

 

   Em 1996, José Afonso Furtado publicou um pequeno volume na colecção «O Que É» (Difusão Cultural) com o título O Livro. Umas poucas páginas com intenção didáctica a explicar sumariamente o que seria este objecto que a todos fascina. Marcou então terreno como especialista na matéria. E continuou a alargar as fronteiras do seu território com variados artigos em torno do mesmo tema, aprofundando aquilo que parece ter-se tornado obsessão sua - não será por acaso que, formado em Filosofia, é bibliotecário, mais precisamente director da Biblioteca de Arte da Gulbenkian; nem por acaso que presidiu ao Instituto Português do Livro e da Leitura (1987-1991); sendo ainda membro do Conselho Superior das Bibliotecas Portuguesas.

 

   Foi também ele quem encomendou o primeiro estudo económico sobre o livro em Portugal, e tem-se destacado como um dos principais protagonistas portugueses da polémica que se mantém em torno do preço fixo do livro na União Europeia.

 

   Em quatro anos, o seu pequeno livro-semente cresceu e multiplicou-se, engrossou e deu origem ao actual volume, de quase 500 páginas, ainda e sempre sobre o livro. Transformou-se num plural: Os Livros e as Leituras - Novas Ecologias da Informação. Também o próprio autor mudou: seduzido pelos encantos das novas tecnologias, acabou por se converter ao uso do «e-book», mas só em algumas circunstâncias. E da prática à teoria foi um passo.

 

   Em Os Livros e as Leituras, José Afonso Furtado oferece-nos um estudo sério sobre esses objectos e os modos do seu manuseamento. E, como todas as reflexões densas e meditadas, traduziu-as numa linguagem clara e acessível, proporcionando-nos um percurso fácil de seguir. Trata-se, pois, de um texto rico em propostas, e mais rico ainda pela quantidade de perguntas que deixa em suspenso, pelas associações que suscita e vai permitir.

 

   Assim, porque o livro enquanto suporte da escrita é também o primeiro prolongamento da memória, leva-nos a evocar o modo como ambos foram tão mal recebidos na sua origem. Conta-nos Platão, no Fedro (275a), pela voz de Sócrates, que foi o deus egípcio Tot/Hermes o inventor da escrita, entre outras artes. Dirigiu-se o deus a Tamus/Amon, rei da Tebes egípcia, e disse-lhe: «Aqui, ó rei, tens um ramo do conhecimento que tornará o povo do Egipto mais sábio e lhe aumentará a memória; a minha descoberta oferece uma receita para a memória e sabedoria.» Mas o rei respondeu-lhe: «Ó homem cheio de engenhos, a uns é dado criar as coisas das artes e a outros julgar a dimensão do prejuízo ou proveito que têm para aqueles que as vão usar. Dado a ternura que sentes pela escrita, que é criação tua, declaraste exactamente o oposto do seu verdadeiro efeito. Se os homens a aprenderem, acabará por implantar-lhes o esquecimento nas suas almas; deixarão de exercitar a sua memória, porque se fiarão apenas no que está escrito, não mais chamando as coisas à memória a partir do interior de si mesmos, mas a partir de marcas exteriores.»

 

   À condenação da escrita vai seguir-se a do próprio livro como um discurso «morto»: «As produções dos pintores erguem-se diante de nós como se estivessem vivas, mas se as questionarmos mantêm-se no mais majestático dos silêncios. O mesmo acontece com as palavras escritas: parecem falar-te como se fossem inteligentes, mas se lhes perguntares alguma coisa sobre o que dizem, a partir de um desejo de seres ensinado, continuarão a dizer-te apenas a mesma coisa para sempre» (275e).

 

   Uma história longa, mas onde se encontram já verbalizados os problemas que agora se reformulam e actualizam face aos novos «media», que levam o vulgo a condenar televisão e computadores e que José Afonso Furtado sistematicamente desmonta no seu livro. Seguindo-lhe o índice, encontramos o volume partido em três grandes momentos: «Livros e Leituras: Questões de História», onde, começando pela definição do livro como objecto, manufactura, superfície de inscrição e meio de transporte das informações, vai abordar todos os problemas do mercado com ele relacionados (incluindo o marketing e os circuitos e canais de distribuição).

 

   Na segunda parte, com o título «Leitura, Leituras», foca as relações que os homens foram estabelecendo com os livros e as metamorfoses sofridas pelo acto de leitura, oferecendo-nos as respectivas sociologia e história, que acaba com um subcapítulo: «O Livro Ameaçado». Emerge aqui uma das maiores preocupações que atravessa todo este estudo: a temida hipótese da morte do livro, anunciada pela preponderância das novas tecnologias de informação.

 

   São estas que constituem o grosso da terceira parte, onde José Afonso Furtado explora todas as teorias sobre o assunto - das mais antigas às mais recentes - expendidas pelos mais eminentes autores nacionais e internacionais. Dividindo-os entre «tecnófilos» e «tecnófobos», aborda as respectivas posições para chegar ao conceito - que resolveu adoptar como subtítulo da sua obra - de «ecologia da informação»: uma metáfora aplicada a um sistema relacional onde todos os elementos se encontram em mudança contínua. Cada um destes, ao desenvolver-se individualmente, suscita uma evolução do conjunto, apelando para um sentido participativo e de empenhamento por parte dos utilizadores.

É aqui que entra a Internet, esmiuçada desde as origens em «A Sociedade de Informação, o Paradigma Digital e as Novas Tecnologias de Informação e de Comunicação», abrindo caminho ao capítulo sobre o «Hipertexto». Este último termo foi inventado por Theodor Nelson, em 1965, quando trabalhava no projecto «Xanadu» - nome retirado de um poema de Coleridge (Kubla Khan) e que se refere ao «local mágico da memória literária onde nada é esquecido». E lá teremos que regressar a Platão.

 

   O hipertexto - uma escrita não sequencial com ligações controladas pelo leitor (pág. 320) - obriga à «redefinição do autor, redefinição do leitor, (a)o rompimento do cânone e dos novos modos de ler e escrever» (pág. 326). Impondo o abandono da linearidade da escrita, dado que possibilita a chamada imediata de outras formas de informação, funcionando como uma rede com múltiplos princípios e fins, tendo muitas vezes variados autores... é a solução que permite ao leitor questionar o que lê, seleccionar os temas que lhe apetece consultar, explorar os aspectos que mais lhe interessam no momento. O hipertexto e a consequente interactividade podem ser entendidos como a vingança de Tot/Hermes - uma irónica resposta do deus às críticas do filósofo.

 

   Do hipertexto, das mudanças comportamentais a que obriga, parte-se para as questões suscitadas por este novo modo de literacia, para regressar ao circuito do livro, agora em edição electrónica, e retomar o tema da «morte» deste objecto, ou melhor, da substituição do suporte de papel pelo electrónico. E com este tema o livro encerra-se circularmente, resolvendo o autor o problema com uma citação de Derrida: «Porque é que haveríamos de sacrificar uma possibilidade no momento em que se inventa uma outra? 'Dizer adeus ao livro, ao papel, hoje, seria um pouco como se um dia decidíssemos deixar de falar porque sabemos escrever.' Como esta situação é 'integradora, sem ruptura absoluta', temos o privilégio de 'conservar ainda o desejo de a nada renunciar'. E então talvez a questão da 'morte do livro' tenha já, definitivamente, perdido o seu sentido» (pág. 435).

 

   Depois de tantas informações tão bem organizadas e esquematizadas, fica uma ligeira frustração. José Afonso Furtado foi tímido ou honesto de mais - nalguns casos oculta-se por detrás das citações, noutros guarda na manga hipóteses muito suas que nos poderia ter revelado. Além disso, o facto de a bibliografia aparecer associada às notas e também a ausência de um índice temático dificultam um pouco a consulta: nada que não possa ser corrigido numa futura edição.

 

Helena Barbas [Expresso, 2000]

 


Os Livros e as Leituras - Novas Ecologias da Informação - José Afonso Furtado - Livros e Leituras, 2000


 

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