Jorge de Montemayor - Diana


 
 Jorge de Montemayor 

 Diana 


Pagã, herética e hermética, foi enfim devolvida à literatura portuguesa e é prova da censura nacional a uma tradição europeia 
 
 
   Junto com o seu modelo - a Arcádia de Sannazzaro (1456-1530) -, Los Siete Libros de Diana, a primeira pastoral ibérica da autoria de Jorge de Montemor (1520-1561) foi responsável pela explosão do romance bucólico Europa fora.
 
   Traduzida para o inglês por Bartolomew Young, terá inspirado Spenser, Sidney e Shakespeare. Também a leu o francês Honoré d’Urfé (1567-1625), cuja Astreia levou Maria Antonieta a vestir-se de pastora e pôr laços vermelhos ao pescoço das suas ovelhas, re-encenando ainda as propostas pictóricas de Luca Signorelli e Poussin.
 
   Por um lado, as novelas pastoris propõem a recuperação de tempos e espaços clássicos. São herança dos Idílios de Teócrito (300-260 a.C.), dos versos de Moscos e Bíon, que Virgílio transporta da Sicília para um edénico Monte do Peloponeso – a Arcádia ou Pãnia, a Terra de Pã – que cada autor reinstaura no vernáculo, numa geografia tão nacional quanto imaginária (a Lusitânia para Montemor). Por outro, parecem constituir-se como descendentes dos amores da poesia trovadoresca (em particular do «trobar clus») no que possuem de herético e conceptual.
 
   É que, também a Jorge de Montemor – muito à semelhança do que acontece com Bernardim Ribeiro – se atribui o recurso aos Diálogos de Amor de Leão Hebreu: traduz e insere excertos na sua obra. Os Dialloghi, indiscutivelmente, são registo exemplar do pensamento da cabala neo-platónica cristã (que encontra os seus expoentes em Marcilio Ficino e Pico della Mirandola), uma tradição que foi passando despercebida – ou sendo rasurada – por estas terras lusitanas.
 
   Os portugueses até são desleixados com os seus autores, mas promovem sempre os «estrangeirados». Não se justifica pois que Diana tenha sido apenas divulgada em 1924 por Afonso Lopes Vieira numa versão para criancinhas. Que os estudiosos a tenham mantido num limbo durante todos estes anos – em particular porque se trata de um «best-seller» com 17 edições só no século XVII. Nem serve de argumento o facto de ter sido escrita em castelhano: Camões, Sá de Miranda, Gil Vicente também o fizeram, trabalhavam para as princesas da corte e não foram penalizados por isso.
 
   A resposta mais evidente é que o livro não contém apenas de histórias de amores infelizes entre pastoras e pastores com nomes mais ou menos clássicos, ou simbólicos, a desabafar uns com os outros em prosa e verso. Mais do que o elogio do paganismo, da igualdade entre homens e mulheres, Diana esconde alguma informação perigosa, ou que não interessaria divulgar.
 
   À partida, dois pontos merecem uma investigação detalhada. O primeiro é a semelhança entre as personagens e estratégias discursivas adoptadas por Montemor, mais tarde por Sottomayor, e principalmente por Bernardim na sua Menina e Moça (esta ainda sem uma edição crítica fidedigna, ao que consta já pronta na Biblioteca Nacional faz mais de dez anos, à espera de um prefácio). Estratégias como as insólitas mudanças de narrador: cada pastor/a que fala conta também como sua a história de um outro, desencadeando-se um curioso e muito labiríntico jogo de espelhos, que é agravado pela repetição das iniciais dos nomes.
 
   Um segundo ponto será a temática do caminho para o «Desengano». Não se constitui este como um simples episódio de desencontro amoroso, vindo a desvendar-se como um percurso de cariz filosófico que o labirinto das histórias, com as suas pequenas variantes, pretenderá esgotar. Este percurso atravessa três momentos: no primeiro (o do «engano») quando o amor é correspondido, «transforma-se o amador na coisa amada», em silêncio; no segundo, quando é preterido pelo amado, o amante revela-se enredado no «desengano», e lamenta a sua coita de amor no canto poético; o terceiro momento, nunca enunciado, corresponderá a uma espécie de ataraxia amorosa, a um estádio filosófico que implica de novo o silêncio, agora pela impossibilidade – e inutilidade – da escrita.
 
   A Diana de Jorge de Montemor, como todos os textos «à clef» quando se lhes perde a chave que permitiria a alguns descodificá-lo, torna-se hermética ou artificial. Como todas as outras formas literárias, o excesso de divulgação junto com a perda de legibilidade – aqui o grande testemunho será o Quixote de Cervantes – acaba por reduzi-las a mera casca, exterioridades, as modas que as empurram até à paródia, ou ao «pastiche» – como acontece em The Beggar’s Opera de John Gay, a «Pastoral de Newgate» a reenquadrar a Arcádia no espaço das prisões inglesas. Condenadas a desaparecer, adormecem até que sejam recuperadas por algum feliz acaso da fortuna.
 
   Ficámos pois muito mais ricos porque Diana foi integralmente devolvida à literatura portuguesa com esta belíssima tradução de Nuno Júdice.
 
Helena Barbas [Expresso, 2001]
 

Diana - Jorge de Montemayor, trad.e pref. Nuno Júdice, Teorema, Lisboa (2001)