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João Miguel Fernandes Jorge - Nem Vencedor Nem Vencido

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 4 months ago
 
João Miguel Fernandes Jorge 

 Nem Vencedor Nem Vencido 


 Sob o signo ou símbolo dos gémeos, um poeta estreia-se na prosa de ficção

 

    É sob o sinal dos Gémeos, representantes da ­oposição interna, de uma contradição não resolvida, que melhor se­ pode entender este texto, uma estreia na prosa de ficção por­ parte de João Miguel Fernandes Jorge.

 
   Nem Vencedor Nem Vencido é ­um título que desde logo indicia um impasse, ou a presença de uma ­situação de «guerra», de «braço de ferro», em que dois adversários se equilibram por possuírem forças iguais.
 
   A ideia­ que revela a tensão interna de um estado permanente, prolonga-se,­ ou toma corpo, nas personagens duplas de Miguel e Teresa. Conta-nos o narrador do terceiro fragmento da primeira parte:­ «Digamos que eu sou o André. Eles, dois, serão sempre o tomado­ nome de Miguel. O outro, outro ainda... Esse outro chama-se Francisco. E as duas mulheres vou querer confundir no seu único nome Teresa.» (p.12). Segue-se, aqui, a imagem, de intenso valor ­mítico, do protótipo dos pares dióscuridos, Castor e Polux, ­Helena e Clitemenestra, que alimentaram a crença greco-latina de­ que os gémeos nascem da união de um mortal com uma divindade, matam os monstros, transformam as coisas caducas e imperfeitas em­ coisas novas, são os libertadores e guias da humanidade.
 
   Anunciam-se, pois, dois nomes para quatro personagens - ­Miguel e Teresa - que ao longo do texto se revelam,­ esporadicamente, como distintas, pelas suas preocupações, ­ocupações, ou qualidades: «Miguel, o outro, não é assim. Gostando igualmente da mentira, não é, no entanto, capaz de guardar um ­segredo... É arguta a sua inteligência como a de mais ninguém­ entre estas páginas.» (p.63). O estranhamento que resulta desta ­primeira astúcia é - embora por oposição - o mesmo que poderemos­ ­experimentar no nosso quotidiano perante dois pares de gémeos vestidos de igual. Exige-se o esforço de atentar cuidadosamente ­nas discrepâncias que vão sendo semeadas para que se possa dar um­ sentido à leitura. Tanto mais que as diferenças revelam, por­ detrás dos nomes, o desejo de representação de uma totalidade do ­ser, no superar da ferida resultante do rasgo constitutivo que­ separou o andrógino original ( Platão, O Banquete, 190) ou no ­reparar da «falta» («manque») lacaniana.
 
   Ao jogo primeiro do confundir voluntariamente as personagens pelos nomes, outros se acrescentam, como o das mudanças ­sucessivas de ponto de vista.
 
   Pelas diversas partes dos doze­ capítulos deste pequeno texto distribuem-se quase tantos ­narradores quantos os seus fragmentos. O narrador, por vezes ­omnisciente, varia entre o «eu» e o «nós». No primeiro caso ­ressalta a sua definição pela negativa - é aquele que nomeia e­ não é nomeado, ou seja, o nome que falta na lista de personagens­ («tu») que se vão mencionando. No segundo caso, quando se assume ­como «nós», este é claramente um plural exclusivo a deixar de­ fora o leitor que, ou se sente expulso como um intruso, ou fica­ na posição de «voyeur».
 
   O mundo que se descreve é privado, tão ­enigmático como uma paisagem interior, em que as ideias se ligam­ por associação a memórias particulares, na sua maioria não ­partilháveis. Por isto se evidencia a descontinuidade do discurso, que ­não é desconexo, pois as ligações estão, à partida, asseguradas ­pelos nomes.
 
   Os elos socorrem-se, ainda, de uma outra estratégia, ­a do recurso aos objectos e  à cores. Em primeiro lugar, os­ objectos tanto podem adquirir uma categoria transicional e tornar-se essenciais na superação da incapacidade de ­relacionamento, como ser testemunho de uma relação conseguida: «Bem poderia ser a imprevista figura de Miguel, o seu duplo,­ pronunciados pela primeira vez pelos meus lábios na sombra da­ jarra azul. O azul ilumina esta paixão, cresce sob esta­ consciência de vento, constrói a mesma morte, ruínas de casa, ­jarra azul que brilha na própria sombra e avança, em cada­ instante, inteira e antiga. E se um dia perdermos a memória do ­nosso encontro? Se a jarra se quebrar sob o céu claro, sob o azul ­da sua sombra?» (p.58).
 
   As relações entre as personagens dependem ­então da fragilidade dos objectos que as assinalam. Mas, como­ garantia, para além do hipotético desaparecimento dos objectos ­permanece a sua cor. Este parentesco segundo, entre o objecto e a ­cor – que desencadeia as sinestesias no texto e serve de estímulo à leitura - funciona ainda de outro modo, como o vínculo (in)visível, não apenas entre as palavras e as coisas, mas entre ­o passado e o presente, num registo de vida e numa «busca do ­tempo perdido»: «Com esta pobre esferográfica, com esta caneta de ­feltro, na ilusão do verde, do azul, do vermelho, do preto; com a ilusão da cor com que escrevo, percebo; escrevo o tempo dissipado ­por meio de severas, estreitas sílabas que contém as humildes ­palavras do nosso fim.» (p. 79).
 
   Nem Vencedor Nem Vencido usa os objectos e as cores como­ momentos de concentração temática que são reforçados pela ­esporádica estrutura de repetição decorrente dos pequenos ­acontecimentos do quotidiano. O seu desenvolvimento é sinuoso, ­encantatório, mas não possui um ritmo rápido, concentrado, ­tendendo para um desenlace único, como o exigem as regras­ tradicionais da narrativa. Ali só o desenlace não existe, o texto­ começa como acaba, exibindo uma certa circularidade, sem uma ­intriga marcada que sofra alterações dramáticas.
 
   As mudanças de ­ponto de vista, por si, não bastam para o definir como romance,­ menos ainda porque nem o conflito interior se resolve. Pela sua­ disposição fragmentada, o texto poderia considerar-se como «epistolar» ou de «diário», tanto mais que nele se cruzam­ instâncias de (auto-)biografia (p.91), pelo centrar-se no fluxo­ de consciência e recorrer ao monólogo interior, à memória, poderia apelidar-se de psicológico. No entanto, pela coexistência de registos distintos e diversos é, seguramente, um herdeiro da­ narrativa modernista, ou do «nouveau-roman», no desvalorizar da ­intriga, na falta de lógica evidente dos percursos, mais ­interiores que exteriores, na transformação das personagens e no ­jogo com a cronologia.
 
   Compreender torna-se decifrar. Será ­retomar o hábito, que se perdeu, de frequentar um domínio obscuro e privado, o dos livros sagrados, ou, obedecendo ao ­invocado na epígrafe retirada do Deuteronómio, estabelecer uma ­nova aliança, um novo pacto narrativo.
 
Helena Barbas [O Independente, 1989]

Nem Vencedor nem vencido – João Miguel Fernandes Jorge, Presença, Lisboa (1989)

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