João Miguel Fernandes Jorge
Nem Vencedor Nem Vencido
Sob o signo ou símbolo dos gémeos, um poeta estreia-se na prosa de ficção
É sob o sinal dos Gémeos, representantes da oposição interna, de uma contradição não resolvida, que melhor se pode entender este texto, uma estreia na prosa de ficção por parte de João Miguel Fernandes Jorge.
Nem Vencedor Nem Vencido é um título que desde logo indicia um impasse, ou a presença de uma situação de «guerra», de «braço de ferro», em que dois adversários se equilibram por possuírem forças iguais.
A ideia que revela a tensão interna de um estado permanente, prolonga-se, ou toma corpo, nas personagens duplas de Miguel e Teresa. Conta-nos o narrador do terceiro fragmento da primeira parte: «Digamos que eu sou o André. Eles, dois, serão sempre o tomado nome de Miguel. O outro, outro ainda... Esse outro chama-se Francisco. E as duas mulheres vou querer confundir no seu único nome Teresa.» (p.12). Segue-se, aqui, a imagem, de intenso valor mítico, do protótipo dos pares dióscuridos, Castor e Polux, Helena e Clitemenestra, que alimentaram a crença greco-latina de que os gémeos nascem da união de um mortal com uma divindade, matam os monstros, transformam as coisas caducas e imperfeitas em coisas novas, são os libertadores e guias da humanidade.
Anunciam-se, pois, dois nomes para quatro personagens - Miguel e Teresa - que ao longo do texto se revelam, esporadicamente, como distintas, pelas suas preocupações, ocupações, ou qualidades: «Miguel, o outro, não é assim. Gostando igualmente da mentira, não é, no entanto, capaz de guardar um segredo... É arguta a sua inteligência como a de mais ninguém entre estas páginas.» (p.63). O estranhamento que resulta desta primeira astúcia é - embora por oposição - o mesmo que poderemos experimentar no nosso quotidiano perante dois pares de gémeos vestidos de igual. Exige-se o esforço de atentar cuidadosamente nas discrepâncias que vão sendo semeadas para que se possa dar um sentido à leitura. Tanto mais que as diferenças revelam, por detrás dos nomes, o desejo de representação de uma totalidade do ser, no superar da ferida resultante do rasgo constitutivo que separou o andrógino original ( Platão, O Banquete, 190) ou no reparar da «falta» («manque») lacaniana.
Ao jogo primeiro do confundir voluntariamente as personagens pelos nomes, outros se acrescentam, como o das mudanças sucessivas de ponto de vista.
Pelas diversas partes dos doze capítulos deste pequeno texto distribuem-se quase tantos narradores quantos os seus fragmentos. O narrador, por vezes omnisciente, varia entre o «eu» e o «nós». No primeiro caso ressalta a sua definição pela negativa - é aquele que nomeia e não é nomeado, ou seja, o nome que falta na lista de personagens («tu») que se vão mencionando. No segundo caso, quando se assume como «nós», este é claramente um plural exclusivo a deixar de fora o leitor que, ou se sente expulso como um intruso, ou fica na posição de «voyeur».
O mundo que se descreve é privado, tão enigmático como uma paisagem interior, em que as ideias se ligam por associação a memórias particulares, na sua maioria não partilháveis. Por isto se evidencia a descontinuidade do discurso, que não é desconexo, pois as ligações estão, à partida, asseguradas pelos nomes.
Os elos socorrem-se, ainda, de uma outra estratégia, a do recurso aos objectos e à cores. Em primeiro lugar, os objectos tanto podem adquirir uma categoria transicional e tornar-se essenciais na superação da incapacidade de relacionamento, como ser testemunho de uma relação conseguida: «Bem poderia ser a imprevista figura de Miguel, o seu duplo, pronunciados pela primeira vez pelos meus lábios na sombra da jarra azul. O azul ilumina esta paixão, cresce sob esta consciência de vento, constrói a mesma morte, ruínas de casa, jarra azul que brilha na própria sombra e avança, em cada instante, inteira e antiga. E se um dia perdermos a memória do nosso encontro? Se a jarra se quebrar sob o céu claro, sob o azul da sua sombra?» (p.58).
As relações entre as personagens dependem então da fragilidade dos objectos que as assinalam. Mas, como garantia, para além do hipotético desaparecimento dos objectos permanece a sua cor. Este parentesco segundo, entre o objecto e a cor – que desencadeia as sinestesias no texto e serve de estímulo à leitura - funciona ainda de outro modo, como o vínculo (in)visível, não apenas entre as palavras e as coisas, mas entre o passado e o presente, num registo de vida e numa «busca do tempo perdido»: «Com esta pobre esferográfica, com esta caneta de feltro, na ilusão do verde, do azul, do vermelho, do preto; com a ilusão da cor com que escrevo, percebo; escrevo o tempo dissipado por meio de severas, estreitas sílabas que contém as humildes palavras do nosso fim.» (p. 79).
Nem Vencedor Nem Vencido usa os objectos e as cores como momentos de concentração temática que são reforçados pela esporádica estrutura de repetição decorrente dos pequenos acontecimentos do quotidiano. O seu desenvolvimento é sinuoso, encantatório, mas não possui um ritmo rápido, concentrado, tendendo para um desenlace único, como o exigem as regras tradicionais da narrativa. Ali só o desenlace não existe, o texto começa como acaba, exibindo uma certa circularidade, sem uma intriga marcada que sofra alterações dramáticas.
As mudanças de ponto de vista, por si, não bastam para o definir como romance, menos ainda porque nem o conflito interior se resolve. Pela sua disposição fragmentada, o texto poderia considerar-se como «epistolar» ou de «diário», tanto mais que nele se cruzam instâncias de (auto-)biografia (p.91), pelo centrar-se no fluxo de consciência e recorrer ao monólogo interior, à memória, poderia apelidar-se de psicológico. No entanto, pela coexistência de registos distintos e diversos é, seguramente, um herdeiro da narrativa modernista, ou do «nouveau-roman», no desvalorizar da intriga, na falta de lógica evidente dos percursos, mais interiores que exteriores, na transformação das personagens e no jogo com a cronologia.
Compreender torna-se decifrar. Será retomar o hábito, que se perdeu, de frequentar um domínio obscuro e privado, o dos livros sagrados, ou, obedecendo ao invocado na epígrafe retirada do Deuteronómio, estabelecer uma nova aliança, um novo pacto narrativo.
Helena Barbas [O Independente, 1989]
Nem Vencedor nem vencido – João Miguel Fernandes Jorge, Presença, Lisboa (1989)
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