James Joyce
Ulisses
Uma óptima tradução portuguesa de um romance intraduzível
1. James Augustine Aloysius Joyce nasceu em Dublin, a 2 de Fevereiro de 1882, e morreu em Zurique, a 13 de Janeiro de 1949. A sua educação pelos Jesuitas - que serviu de tema ao muito parodiado Retrato do Artista enquanto Jovem (1916) – foi completada por um curso de literatura na Universidade de Dublin e estudos de medicina em Paris. Viveu grande parte da sua vida no estrangeiro, entre aquela cidade, Zurique e Trieste.
Começou por editar um pequeno livro de poemas (Chamber Music, 1905), mas a sua carreira literária só arranca de facto com Gente de Dublin (1914), atingindo o auge com Ulisses (1922), a que se seguiu Finnegan's Wake(1939).
O romance agora traduzido tem uma génese e historia editorial estranhas. A sua escrita principia em 1914, tendo os episódios iniciais sido publicados em 1917 na revista americana Little Review - dirigida por Ezra Pound -, mas só é terminado apenas alguns dias antes de sair em volume, em 1922, em Paris.
Sucessivamente censurado na América e depois em Inglaterra, o livro chega a dar origem a um processo judicial. A polémica que suscita estende-se aos autores contemporâneos que o louvam – como T. S. Eliot, Hemingway e Faulkner - ou o criticam acerbamente - como D. H. Lawrence, e Virgínia Woolf. De então para cá as questões em torno de Ulisses mantêm-se, mas são agora suscitadas por aspectos de fidelidades editoriais.
2. O romance de Joyce tem por título o nome do protagonista da Odisseia de Homero, a epopeia que inaugura as narrativas sobre o regresso dos heróis de Troia à sua terra natal («Nostoi») - neste caso, Ítaca.
Em Homero, Ulisses é caracterizado por contraponto a Aquiles, o guerreiro exemplar. É também ele um lutador exímio - um realizador de obras - mas a sua principal qualidade revela-se ser a astúcia, fruto da eloquência: é pelo uso da palavra justa, no momento exacto, que verdadeiramente se diferencia de Aquiles.
Reconhecido como modelo acabado do homem completo - aquele que alia à destreza no uso das armas, o talento de agir com as palavras - Ulisses é o «politropos», o que tem a capacidade de utilizar os múltiplos modos do discurso. Todavia, o seu heroísmo demarca-se ainda por uma pluralidade de «excelências» a que Joyce não ficou insensível: é o bom pai e o bom filho, o bom marido e o bom amante. São-lhe, portanto, atribuídas todas as funções que cabem, normalmente, ao homem comum no decurso da sua vida.
Terá sido esta qualidade universal - que o torna símbolo de todos os homens, ou do Homem - que Joyce pretendeu recuperar para a sua personagem, apresentando-nos em Leopold Bloom uma moderna versão daquele herói da antiguidade. Bloom, inicialmente baptizado Odysseus, é o aqueu possível aos nossos dias, com os conflitos e contradições inerentes à situação política e também religiosa do momento: um herói irlandês de origem judaica, cujas simpatias se dirigiram sucessivamente para o catolicismo e para o protestantismo.
Este Ulisses passeia-se por Dublin no início do nosso século: a sua epopeia dura, não dez anos, mas um dia; o espaço que percorre não é mais mítico, mas real e urbano. Não completamente aceite socialmente, a personagem peregrina pela cidade em que nasceu, seguindo os passos simbólicos do seu par da antiguidade: a cidade torna-se sinonimo do mundo, oferecendo tantas tentações e perigos quanto os locais do passado.
O regresso a Ítaca - tema que tem fascinado diversas gerações de autores - é reduzido ao retorno a casa do nº. 7 de Eccles Street. Penélope, o exemplo clássico de fidelidade feminina, aproveita a ausência do marido para, sob a faceta de Molly, se encontrar com a moderna versão de um dos «pretendentes». Outras figuras oferecem paralelos, mais ou menos evidentes, com as personagens épicas. Assim, os elementos homéricos são redimensionados à escala possível ao século XX, as sereias tornam-se criadas de bar, a feiticeira Circe apenas uma «madame» de prostíbulo.
3. Mas a eloquência do herói da antiguidade ultrapassa a personagem de Bloom e estende-se a Joyce-narrador, que aspira também à capacidade oratória, homérica ainda, de Nestor, o contador de histórias.
Enquanto Ulisses utiliza habilmente os vários modos do discurso, Nestor impõe-se pela vasta tradição que consegue evocar, pelas narrativas da sua juventude, da juventude dos outros, salientando-se pela capacidade de rememoração do passado. Ulisses representa a qualidade grega do «logos» - a arte da palavra – Nestor representa o «mythos» - a arte de contar histórias - e ambas estas variantes da mesma arte são ambicionadas pelo autor irlandês.
Neste pressuposto se fundamentará, por um lado, o recorrer a todo o tipo de discursos, do mais coloquial ao mais elaborado, do quotidiano ao fantástico, passando pelo científico, bem como o utilizar de todo o tipo de géneros literários e suas cambiantes, misturando-se, primeiro que tudo, romance com poesia, teatro e música (no extremo da reprodução de pautas anotadas), depois, monólogos dramáticos com diálogos teatrais, a que não faltam as didascálias; a estes são ainda associados excertos de operetas, canções de rua, pedaços de lendas irlandesas, passagens da Bíblia, enfim, um sem número de "citações" da civilização, da cultura e da arte, que transformam o texto num amálgama histórico modelar, num "arquitexto".
Justifica-se que, em última instância, a personagem de Ulisses seja a arte da palavra, ou melhor, o dom da palavra, aquilo que torna os homens diferentes de todos os outros seres vivos, o que lhes permite a passagem do conhecimento -pragmático, histórico, científico –, o principal meio para comunicar entre si, estabelecer laços e semelhanças, mas também para demonstrar as suas diferenças e exibir a sua criatividade.
A coexistência de todos os modos e variações no uso da linguagem, acrescem, neste romance, as manifestações «individuais» da criatividade linguística, os desvios a esse uso normalizado: as onomatopeias, os jogos de palavras, os subentendidos, as composições analógicas, a invenção de novos termos.
4. É principalmente por este último aspecto – porque o seu autor exibe as zonas intraduzíveis da linguagem, brinca comos «traços supra-segmentais» – que o romance de Joyce não pode, de facto, ser trasladado para outra língua, pois qualquer versão estrangeira será, «a priori», falsa e incorrecta.
No entanto, esta razão não deverá dar azo a excessos de purismo, nem ser exibida como motivo suficiente para condenar os não conhecedores do inglês à ignorância. Não pode, também, servir de argumento aos excessos de «criatividade» individual - como é o caso da tradução brasileira de António Houaiss (1966; Difel, 1984), onde uma «língua de nenhures e de ninguém» (M.E.C. - O Jornal 7.12.83) se substitui à(s) voz(es) de Joyce.
Por tanto se ressalta a coragem e o mérito do trabalho levado a cabo por Palma Ferreira, pelo cuidado que pôs nas reconstituições possíveis, que revelam uma fidelidade amorosa ao autor irlandês. De salientar, ainda, o longo prefácio introdutório, bem como as notas que não apenas acompanham os momentos mais difíceis - justificando as escolhas do tradutor -, como abrem cada capitulo oferecendo pistas para a sua leitura.
Helena Barbas [O Independente, 23 de Junho de 1989, III p.50]
Ulisses - James Joyce, trad. e notas João Palma-Ferreira, Livros do Brasil, Lisboa (1989)
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