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Gnósticos e Gnosticismos

Page history last edited by PBworks 16 years, 11 months ago

Gnose e Gnosticismos

 
 
 
   É agora publicado em português, a partir de uma tradução do espanhol, o grande corpus dos textos divulgados como «gnósticos», dos séculos II-IV da nossa era, que constituem a «Biblioteca de Nag Hammadi».
 
   Com a descoberta destes papiros em 1945, os termos «gnóstico», «gnose», «gnosticismo» passaram a exigir ajustamentos. J. M. Torrens, especialista do assunto e um dos tradutores, propõe, em 1966, num colóquio em Messina, uma redefinição para se evitar qualquer «febre pan-gnóstica». Sugere que se conceba a gnose como um grupo de sistemas tendo por objectivo o «conhecimento dos mistérios divinos reservados a uma elite», obtido por uma revelação diversa das bíblica e islâmica.
 
   Historicamente o «gnosticismo» é uma «contra-cultura». Com base numa perspectiva dualista, inverte os pressupostos tanto do cristianismo nascente, quanto o do paganismo helenista. E a principal inversão dá-se ao considerar o cosmos e o seu criador – o Demiurgo (roubado ao Timeu de Platão) – como negativos, e o homem como superior a ambos. Mas nem todos os homens serão indivíduos superiores. Só alguns: os que nascem com a inquietação (ou «intuição») que os leva a sentirem-se «peregrinos», «estrangeiros» nesta terra. A marca de eleição do gnóstico, que é um predestinado, manifesta-se na capacidade de conhecer o modo de escapar às influências astrais, à heimarmene, e de saber como fazer a centelha divina que o habita «regressar a casa».
 
   Havia já notícia destes textos e destas seitas, que nos chegaram pelos Padres da Igreja, os caçadores de heresias dos séculos II e III da nossa era: Justino, Ireneu de Lião (Adversus Haereses, 180-190 d.C.), Hipólito de Roma (Refutatio 222 d.C.), Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano, e o pagão Plotino.
 
   Todos referem os diferentes tratados de um modo parcelar e tendencioso, pois têm como objectivo confesso defender os respectivos dogmas, evitar os desvios. São eles quem apelidam indiscriminadamente de «gnósticos» todos os heréticos que combatem. Estes são duplamente perigosos, seja por se considerarem membros da sua própria religião, seja por se assumirem como depositários de ensinamentos transmitidos, mais ou menos secretamente, pelo Salvador aos apóstolos. Apoiam-se, assim, numa tradição esotérica reportada oralmente por Jesus aos discípulos, que complementaria o ensinamento exotérico veiculado em público e registado no Novo Testamento. Daqui sucede que cada seita acabe por se colocar sob a égide de algum dos doze apóstolos, organizando-se em torno de variados «evangelhos» pretensamente elaborados por qualquer dos discípulos mais próximos de Cristo, ou fabricados por contemporâneos com maior «entendimento» e habilidade para interpretar as escrituras.
 
   Ireneu, o presbítero de Lião (177 d.C.), acusa todos os gnósticos de mutilar as escrituras, de usar excertos e citações em proveito próprio, de deturpar os textos de modo a que provem as suas «elucubrações incorrectas». Além da proximidade, da mistura acrítica de informações de proveniência vária (contaminar os textos sagrados com oráculos antigos e pregações do presente, p. ex.), incomoda-o afirmarem possuir um conhecimento superior.
 
   As refutações dos heresiólogos de mais peso provam que as variantes das narrativas evangélicas eram conhecidas ao seu tempo, e eles próprios acabam a servir de intermediários na sua difusão pelo Ocidente, atravessando a Idade Média e o Renascimento. Expurgam os escritos, sujeitam-nos a um resumo redutor que ignora diferenças, por vezes fundamentais e antagónicas entre as várias heresias. Num levantamento breve, Torrens detectou perto de 40 variantes. Isto porque, ao alcançar a iluminação, cada indivíduo deverá escrever o seu próprio evangelho – original e único como a revelação que recebeu.
 
   Porém, o(s) gnosticismo(s) não se limitam no tempo e no espaço. Vão rebentando esporadicamente sob outros nomes ao longo da história. Inspiram os cátaros ou albigenses do século X, a Divina Comédia de Dante (1308-1321), o cabalismo-judaico-cristão do Renascimento, o universo de William Blake (1757-1827). Mais perto de nós, de modo consciente ou não, pervade os escritos de uma seita tão estranha como a Ordem do Templo do Sol, responsável pelos suicídios em massa em França, na Suiça e no Canadá, entre 1994 e 1997.
 
   Actualmente, também os grandes estudiosos modernos do assunto se dividem – ou completam – na interpretação deste saber. De facto, «gnose» é a palavra grega para conhecimento, o que permite que se entendam as teorias decorrentes dos volumes de Nag Hammadi não exactamente como uma religião, embora o seu objecto pertença ao campo da fé.
 
   Assim, para I. P. Couliano trata-se de uma «ciência», uma vez que as preocupações gnósticas se relacionam com as influências astrais. Para H. Leisegang será uma filosofia, devido à tónica nos modos de conhecer, no processo especulativo.
 
   Enquanto Elaine Pagels se inclina para a psicologia, visto a gnose implicar um processo intuitivo de auto-conhecimento. Conhecer-se a si próprio (a frase à entrada do templo de Delfos) é conhecer a natureza e o destino humanos – e em última instância, conhecer Deus.
 
   O que conduz à leitura de Hans Jonas: «Descobrimos que «gnosis» significa uma das seguintes coisas: conhecimento dos segredos da existência de acordo com o mito gnóstico, e estes incluem a história divina pela qual o mundo teve origem, a condição do homem nele, e a natureza da salvação; depois, mais intelectualmente, a elaboração destes princípios em sistemas especulativos coerentes; depois, de modo mais prático, o conhecimento do «caminho» da futura ascensão da alma e do modo de vida correcto para preparar este acontecimento; e no campo mais técnico ou mágico, o conhecimento dos sacramentos, das fórmulas operativas, e de outros meios instrumentais pelos quais a passagem e a libertação podem ser asseguradas.»
 
   Tendo em conta que, em última instância, possuir a «gnose» é ter o conhecimento de Deus, instalam-se dois paradoxos. O primeiro porque, tratando-se do conhecimento do não conhecível, tal só poderá ser alcançado através da revelação. Esta pode desencadear-se por meio de transmissão secreta de mestre a discípulo. Pode também surgir por iluminação interior – a alma (ou «pneuma») do hílico ou psíquico (o homem comum) é acordada pela palavra (Logos ou Noús) de um «perfeito». Em qualquer dos casos – segundo paradoxo – acaba por suscitar uma fusão entre conhecedor e conhecido, que opera uma metamorfose na condição do ser humano, que deixará de o ser.
 
   De imediato, tudo isto altera profunda e completamente o dogma cristão da queda. O pecado original, uma desobediência para alcançar o conhecimento, torna-se um acto positivo, tanto mais que Iahweh passa a identificar-se com a entidade negativa do Demiurgo ignorante. Depois, porque o homem sofre, não pela queda, mas pelo desconhecimento de si próprio, o grande pecado é ainda a ignorância. Em última instância, a gnose permite que o homem afirme «Eu sou Deus» (ou filho de Deus, ou Antropos – o Filho do Homem ou um espírito divino) como Simão o Mago ou como Jesus Cristo. Um Deus que, de Uno, se revela duplo e andrógino pois, na origem do mito genésico do cosmos gnóstico, existe uma entidade feminina – a divina Sofia.
 
   Por tudo o que ficou dito pode vislumbrar-se a importância destes 53 textos, cada um deles devidamente acompanhado de uma introdução que o enquadra e explicita. Encontra-se, porém, uma tendência para considerar que o ecletismo da colecção original se deve ao desejo ou necessidade dos seus autores de criarem uma antologia – decalcada do modelo da Bíblia. Esta ficção, que pervade as sábias introduções a estes volumes, corre o risco de vir a empobrecer as leituras, ou de conduzir a uma interpretação monolítica, sugerir que existiria a tentativa de criação de um dogma ou doutrina gnósticos únicos.
 
   O fascínio e a inteligência do(s) gnosticismo(s) nascem da recusa da imposição de uma única ideia comum a todos, da repulsa por qualquer totalitarismo fundamentalista. Nestes percursos em direcção à conquista do conhecimento cabem todos os devaneios de todas as mentes. Quanto mais díspares, mais enriquecedores, pois melhor contribuem para o mapa cristalográfico de todas as possíveis leituras da manifestação da divindade, para insinuar todos os ângulos de uma força divina que, sendo única, não é una, mas multifacetada.
 
 
Helena Barbas
 

 

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