| 
  • If you are citizen of an European Union member nation, you may not use this service unless you are at least 16 years old.

  • You already know Dokkio is an AI-powered assistant to organize & manage your digital files & messages. Very soon, Dokkio will support Outlook as well as One Drive. Check it out today!

View
 

Gerrit Komrij - Contrabando

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 5 months ago

 Gerrit Komrij


 

Contrabando


 

Em português, alta vontagem de uma antologia de Komrij, que abdicou de ser «Poeta da Terra Mãe» holandesa

 

   Com um prefácio de Arie Pos, e em óptima tradução de Fernando Venâncio, foi agora apresentado o segundo livro de poemas em português de Gerrit Komrij (n.1944), Contrabando (Assírio & Alvim, 2005). Trata-se de uma antologia com o objectivo de tornar mais conhecidos entre nós os insólitos versos deste Dichter des Vaderlands, que escolheu Portugal como residência há mais de vinte anos.

 

Vive perto de Oliveira do Hospital, mas, embora considere que «é um privilégio aprender uma língua e descobrir uma literatura», não quer falar português: «Não escrevo em português porque não quero sonhar em português, nem dizer palavrões em português. Por isso tento sempre falar um português o mais estúpido possível. Felizmente, porque estou a viver no campo, só tenho que falar do tempo, das ervas e das vacas, e aí tenho bastante sucesso».

 

A sua segunda língua é o alemão - nasceu junto à fronteira - e os primeiros poetas que o seduziram os do expressionismo dos anos 20 e 30. Conhece como poucos a nossa literatura, «riquíssima», e além de Camões e Pessoa, interessam-lhe: «as figuras menores, as pessoas invulgares. Mas falando das grandes figuras, Eça de Queiroz é alguém com quem me sinto em casa. Gosto de tudo o que leio dele, e sobre ele». Quanto a uma possível influência nossa na sua escrita, diz ser pouco provável: «Já escrevia quando descobri a literatura portuguesa, e as influências apanham-se mais quando se tem dezassete, dezoito anos, quando se está na idade das comparações, quando se vê como era diferente a literatura no século dezanove e em particular no século dezoito, depois como era bela nos séculos dezassete e dezasseis».

 

   O seu primeiro livro, em 1968, publicado em pleno vigor dos versos livres e brancos, apresenta poemas rimados, obedecendo às formas fixas tradicionais. A sua estratégia é o uso da «coda», o último verso que sabota ou inverte todo o sentido do poema: «Prefiro pensar no poema como uma espécie de missão suicida. A forma mata o conteúdo. O último verso é a punhalada final». Ainda, o tom é galhofeiro. Diz em Arcadia Ravaged (Arcádia Destroçada): «Quer fosse estúpida ou inteligente, a poesia tinha que chocar. Era um terramoto linguístico… A poesia era uma questão de sismografia. A poesia era medida pela escala de Richter, não apenas nas escalas da moralidade ou da seriedade». Quanto à temática, trouxe para os versos elementos pouco dignos para serem cantados: «Mais tarde tornei-me mais filosófico. No princípio gostava de usar palavras comuns para falar de banalidades. Penso que a poesia não tem nada a ver com saltos altos, ou nuvens, ou coisas elevadas. Tem a ver com a vida da rua, as coisas comuns. Temos que ser capazes de dizer um poema na rua sobre as coisas da rua».

 

   Acusam-no de iconoclasta, enquanto a paródia, as máscaras, a preocupação em suscitar o riso, levam a que não seja tomado muito a sério. Ou depois o venham a considerar azedo: «As pessoas dizem-me que, por ter um olhar tão crítico sobre as coisas, devo ser uma pessoa muito amarga, mas não é verdade. A questão é que nunca tive ilusões acerca da humanidade. Também escrevo sobre coisas que já não existem. Não quero dizer que seja nostálgico. Não gosto de nada nostálgico. Mas perdemos coisas, perdemos amigos, perdemos ilusões. Bom, ilusões, felizmente, nunca perdi, porque comecei por não ter nenhumas. Por isso nunca fui decepcionado.» Não acredita pois na felicidade. «Por isso todas as coisas que me acontecem são sempre positivas. A felicidade existe para evitar a infelicidade o mais possível». Uma teoria que já defendeu em Intimacies, («Vale a pena procurar a felicidade»): «A felicidade perfeita é fascista. … A felicidade não significa a existência da felicidade, a felicidade significa a demanda pela felicidade, a luta por um ideal que nos parece ser a felicidade. Quando sabemos que esta demanda nunca poderá ser realizada – e isto nós sabemo-lo – então a nossa única felicidade consiste na insatisfação. Em sermos infelizes. / O pensamento da felicidade torna-nos infelizes. Ver a felicidade dos outros, torna-nos ainda mais infelizes. … Por outro lado, quando olho em volta vejo muitos … que conseguem arrastar-se bastante bem pela infelicidade. E quanto melhores são nisso tanto menos infelizes se sentem». Paradoxal.

 

   É pois difícil falar a sério com Gerrit Komrij. Não que ele não se preste aos rituais das entrevistas, mas porque o faz com a mesma ironia e distanciamento com que trata tudo o mais. Porque este nosso tempo é de destroços: «Poetas lemo-los de olhos enxutos. / que é dos tempos de peito lacerado? Que é dos cantares de comiseração? /Dos Aranzéis? Tudo morto, enterrado. // …/ A mágoa tornou-se papelão. Ficou/ à venda esgar, berro e cruel dor. (a granel, / à peça, escolha.) O vinagre amelaçou.» (Resíduo, p.61). Aparentemente uma poesia de palavras, os versos são feitos de ideias sobre as palavras. Poder-se-ia associar este tipo de escrita a um novo «conceptismo» condicionado pelos trágicos tempos modernos. Diz em «Voltagem» sobre os Dicionários: «De termos que o cartapácio contem, / A chispa de um poema está forjada. / Ao poeta, ao despertar, é só deitar-lhe/ A mão, bastando que electrificada.» (p.69). Gerrit Komrij joga com os referentes comuns, usados até se desvirtuar o sentido que o dicionário lhes atribuiu – por falta ou excesso. Depois exibe a máscara do anti-poeta romântico. Sem dores existenciais, porque para saber quem é «basta-lhe ir à enciclopédia». Sem dramas: «Sento-me e 45 segundos depois o poema está pronto. Não sofro com a criação. A poesia é muito fácil: ou se é capaz de a fazer, ou não é. Nasce-se assim, ou não se nasce. Há muitas palavras para isso – musas, inspiração – mas não acredito nelas».

 

   Também não sabe dizer de onde lhe vêm os versos: «Não sei, mas não é nada de que nos devamos orgulhar». Diz-nos como tudo começou: «apercebi-me subitamente de que era capaz de escrever um poema. Mostrei-o aos meus amigos. Eles disseram-me que era bom, e acreditei neles. Eram meus amigos, tinham que estar certos. E eu tinha que acreditar neles, de outro modo não poderia ter continuado.» Continuou. A mais recente publicação da sua obra Alle gedichten tot gisteren (Todos os Poemas até Ontem, 2004), tem mais de 700, e o título indicia que irá sendo revista e aumentada. Quanto à qualidade dos seus versos, diz-nos em «À Sorte»: «O estranho é: se queres escrever «um verso» / Consegues. Serás então um talento? /…/ E vês, o mais falhado dos teus versos/ É melhor que o melhor, bem comparando, / De poetas ‘meios-bons’. Isso é de caras.» (p.49). Também o auto elogio é irónico, pois confessa: «O poeta que eu gostaria ter sido era Raymond Queneau».

 

Helena Barbas [Expresso, 2005]

 


 

Contrabando - Gerrit Komrij - Trad. Fernando Venâncio - Assírio & Alvim, 2005


 

 

Comments (0)

You don't have permission to comment on this page.