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Fátima Maldonado - Cadeias de Transmissão

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 5 months ago
 
Fátima Maldonado

Cadeias de Transmissão 


Vinte anos de poesia ciselados num livro
  
   A seis títulos - Cidades Indefesas, Os Presságios, Selo Selvagem, A Urna no Deserto, Caça e Persuasões, e O Rumo das Coisas - corresponde este livro de Fátima Maldonado, de Cadeias de Transmissão. Quase vinte anos de poesia em duzentas e poucas páginas, lenta e cuidadosamente publicada.
 
   A saudar o primeiro volume, em 1980, Joaquim Manuel Magalhães (Os Dois Crepúsculos) previa a discrição da autora: «Aqui, mais uma vez, fora dos circuitos das panelinhas burocrático-líricas, a poesia portuguesa continua-se numa recusa aos comportamentos dominantes (literários também), que um autor como o deste livro deve bem saber manter: assim como aguentou aparecer sozinha, assim como não mendigou prémios a júris cretinos (pelo menos porque aceitam sê-lo), esperemos que não consinta que a transformem em vedeta do verso...» (pág. 280). Não consentiu.
 
   É neste mesmo artigo que se lança o mote a inspirar leituras posteriores da poesia de Fátima Maldonado: o erotismo, ou o «lamento da incapacidade de atingir a plenitude do erotismo», a ausência de «primarismos feministas», a ironia a tornar-se sarcasmo no «taco a taco com as taras masculinas dominantes», a presença da cidade «como pano de fundo» e «a rapina da história» passada tornando-se presente. Tudo isso está aqui, embora trabalhado – revisitado, para manter o registo.
 
   Os poemas mais antigos sofreram uma metamorfose, em parte natural, nascida do tempo e da distância; o resto provocado pela revisão feita a partir do presente: o apuramento da voz que chama à pedra o que achou serem alguns excessos e desvios; o aguçamento do olhar que reperspectiva da frente para trás, obrigando à convergência final. O resultado é uma obra nova, diferente da conhecida: os livros tornaram-se capítulos, partes a manterem ainda as suas características primeiras mas, ao enquadrarem-se, formando um todo a fazer sobressair aspectos outros.
 
   Curioso é que os temas inicialmente «secundários»: a cidade, a História - surgem agora como presença avuncular minando tudo. Diluiram-se as distâncias, criaram-se continuidades. O espaço do «eu», que é o corpo habitado, confunde-se com o da cidade, local habitado pelo corpo, sendo por vezes intermutáveis: «Detenho-me nas docas e perscruto se avisto/ alguma turbação,/ a ligeira denúncia da vida recomeço/ mas nada altera a quieta solidão/ da cidade-mortalha/ por dentro de nós dois» (pág. 81). Correspondências em que interior e exterior se interpenetram e definem, em que o abstracto se materializa e vice-versa, permitindo inventar uma tradição para esta poesia: nela se cria um vértice (ou uma cadeia de transmissão) entre a ideia de alma como castelo ou morada em Teresa D'Ávila, e o universo surrealizante e sitiado de Luísa Neto Jorge.
 
   Há ecos do «eu-alma» como «morada penosa, mui duro desterro», só que sem castelos de diamante: «Nesta cidade onde vamos soterrados/ horrendos cheiros atacam/ dos depósitos,/ ameijoas decompostas reluzem/ em sucos opalinos,/ compõem ritmos/ onde sucumbem fórmulas/ nos restos de maresia/ o nácar das ostras derrete-se no estrume,/.../ Sente-se o bafo, o muco, o ranho,/ o rasto que nos deixa/ lesmático coturno...» (pág. 191).
 
   O mal não indica o caminho para a perfeição, nem admite redenções. É prova da queda, reiterada pelas sensações e emoções impostas pelo espaço a uma «alma» tornada toda corpo - também «abrasando-se em si mesma» -, ferindo-lhe os sentidos: «Quem me segura/ a meio da floresta?/ Os rebites do corpo/ apodrecem/ no alguidar dos ossos/ ardem cruzes ímpias/ instala-se bolor/ no feixe das sinapses,/ formol no ajuste das pernas/ recidiva na gaiola de lume./ Adaga mancha topografias/ a linfa curva a toponímia/ aos outros corpos lança pregões/ não os confirma,/ fica parada no cais do vício/ crava na testa essa tonsura./...» (pág. 179).
 
   Há uma religiosidade por antinomia, a atestar-se nas séries de poemas sacros - «Oratórias», «Invocação a Mytra» ou sobre Tobias. Em «Tobias e o Anjo I» explicitam-se os motivos deste mundo mais às avessas do que terra-sem-vida: «Deus nesse tempo/ ainda deslumbrado/ aposta na Sua criação/ sorrindo às fraquezas/ apoiava os incautos/ .../ não perdia a paciência/ como agora perdeu,/ amava com um dó/ sem reservas,/ a vergonha/ só viria depois.» (pág. 213).
 
   O espaço contamina o tempo, cede-lhe fusão e malignidade: «Nos tectos do claustro/ Adão Francisco lacerou/ rubicundos meninos/ que tapam os ouvidos/ às chufas de emigrantes/.../ O folhetim das nove vai perturbar nas covas/ os monges sob o xisto,/ enquanto/ alguém nos mostra/ um pedaço de crânio/ num saco de plástico.» (pág. 73). Ao coserem-se ao presente os acontecimentos do passado, torna-se difícil perceber se a História se tornou estória ou biografia, ou todas em simultâneo, mas também não interessa: «Unhas recentes/ agarram longos drinks/ encontros abandonam/ edifícios/ antiga identidade/ resgata construções./ É inútil saber/ que não vivi/ Goa em 44/ ainda portuguesa» (pág. 118).
 
   A questionação das figuras antigas desvia-se da estratégia modernista; o monólogo, de dramático, passa mais a interior - como se por vezes a máscara se colasse à pele, ultrapassando Sena numa metamorfose total: «Do fundo do sarcófago/ a tua face ouvia-me lembrar./...» (pág. 45). Porém, não se dá o regresso a qualquer espécie de intimismo confessional, já impedido pelo hiper-realismo de um universo neo-gótico de inquietante, e porque os poemas continuam a contar estórias, a inspirar-se em cenas do quotidiano.
 
   Pelo meio, há as experiências irónicas com métricas e temas tradicionais, como na recuperação «A Dama Pé-de-cabra em Veneza» ou «Um fado»; o esboço de um romance pouco oral em «Painéis de Vigilância»; a preocupação política em «Cinco-Poemas Anti-CEE», ou «Antilírica»: «Lisboa das comendas/ que reis de papelão/ investem nos serventes/ enlanguesce nos ritmos/ com correntes à mó/ e vasa no olhar/ vai moendo o farelo./ Paroquial,/ os punhos sob a véstea,/ exime-se ao remorso/ de ter desamparado/ a terra de Timor.» (pág. 222).
 
   Uma poesia dura, lúcida, sem contemplações.
 
Helena Barbas [Expresso, 1999]
 

Cadeias de TransmissãoFátima Maldonado, Frenesi, Lisboa (1999)

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