Christa Wolf
Cassandra
Um extraordinário romance sobre a não contada história dos vencidos.
É bastamente conhecida a lenda do rapto de Helena por Páris, motivo fundamental para o desencadear da guerra de Tróia, o tema da Ilíada de Homero. Mas a par da versão tradicional existe uma outra, talvez menos divulgada - presente na tragédia Agamemnon de Eurípides, e confirmada pelo seu contemporâneo, o poeta Estesicorus (séc. VI A.C.) - em que Helena, de Tróia, nunca chega àquela cidade. O navio que a transporta de Esparta terá aportado no Egipto, e a mais formosa das mulheres acabou sendo roubada ao seu raptor pelo rei do país.
O que Páris leva – ou diz que leva – consigo, é apenas uma imagem, um duplo de Helena. Salvaguardam, assim, os antigos, a moralidade da bela Helena e a honra de Menelau. Mas como consequência, a guerra de dez anos que termina com a destruição de Tróia deixa de ter sentido: lutou-se por um fantasma.
É esta segunda faceta da lenda que vem a ser recuperada por Christa Wolf em Cassandra, e usada como metáfora da inutilidade de todos os conflitos ideológicos: «Só precisávamos de nos orientar pela nossa tradiçäo troiana. Mas como era ela? Em que consistia? Até que percebi: em Helena, que inventámos, defendíamos tudo aquilo que já não tínhamos. E que, quanto mais desaparecia, mais obrigados éramos a declarar a coisa real.» (p.108).
A heroína de Cassandra, embora uma personagem muito secundária, pertence também à Antiguidade Clássica: é a mais requestada das filhas de Príamo e Hécuba, os reis de Tróia, uma sacerdotisa de Apolo. O deus, apaixonado, concedeu-lhe o dom da profecia mas, ao ver rejeitado o seu amor, transforma-o em maldição, e todas as verdades preditas por Cassandra não serão acreditadas. Os avisos que faz aos Troianos quando da chegada de Páris à cidade, o desaconselhar da partida deste para Esparta, e da entrada do cavalo de madeira adentro das muralhas, não são tidos em conta pelos seus concidadãos.
O romance de Christa Wolf fala dos segredos e dilemas desencadeados pelo excesso de visão, e centra-se na viagem de Cassandra para Micenas, já uma das cativas de Tróia, dentro de uma gaiola de salgueiro. Durante este breve percurso, Cassandra – que sabe irá morrer com o seu captor, Agamemnon, às mãos de Clitemenestra – revê toda a sua vida: a infância, as relações com os irmãos, o pai, o seu amante Eneias, e com as outras mulheres; mostra também o outro lado da guerra, o sofrimento sem nome da cidade, a sua queda lenta, a degradação da vida e comportamento dos habitantes, o destruir de uma tradição.
Conta-se aquilo que Homero, um grego (e logo, um dos vencedores), esqueceu, ou não soube narrar, porque a História ignora os vencidos. Curiosamente, são os derrotados de Ílion, os fugitivos chefiados por Eneias, quem vai dar origem a um segundo Império – o romano – e a uma outra epopeia, a Eneida de Virgílio. Assim, entre os dois grandes senhores da Antiguidade – Homero e Virgílio – vem inserir-se esta voz feminina que, mais de dois mil anos depois, nos dá uma outra perspectiva da História.
Como Jean Giraudoux em La Guerre de Troie n'aura pas lieu (1935), Christa Wolf é seduzida pela história do que poderia, ou deveria, ter sido. Transformando em gente de carne e osso os nomes empoeirados e frios de um passado tão remoto, Cassandra tem lugar, de pleno direito, tanto ao lado de As Memórias de Adriano, de M. Yourcenar, como junto da trilogia sobre Alexandre o Grande da inglesa Mary Renault (Fire from Heaven 1971, The Persian Boy 1972, e Funeral Games 1981).
História e literatura são actualizadas de um modo fascinante e profundamente humano – um livro a não perder.
Helena Barbas [O Independente, 12 de Janeiro de 1990, III p.31]
Cassandra - Christa Wolf, trad. João Barrento, Cotovia, Lisboa (1989)
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