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Christa Wolf - Cassandra

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 4 months ago

Christa Wolf


Cassandra


Um extraordinário romance sobre a não contada história dos vencidos.

 

   É bastamente conhecida a lenda do rapto de Helena por Páris, ­motivo fundamental para o desencadear da guerra de Tróia, o ­tema da Ilíada de Homero. Mas a par da versão tradicional ­existe uma outra, talvez menos divulgada - presente na ­tragédia Agamemnon de Eurípides, e confirmada pelo seu­ contemporâneo, o poeta Estesicorus (séc. VI A.C.) - em que Helena, de Tróia, nunca chega àquela cidade. O navio que a ­transporta de Esparta terá aportado no Egipto, e a mais ­formosa das mulheres acabou sendo roubada ao seu raptor pelo­ rei do país.

 

   O que Páris leva – ou diz que leva – consigo, é­ apenas uma imagem, um duplo de Helena. Salvaguardam, assim, ­os antigos, a moralidade da bela Helena e a honra de ­Menelau. Mas como consequência, a guerra de dez anos que­ termina com a destruição de Tróia deixa de ter sentido: lutou-se por um fantasma.

  

     É esta segunda faceta da lenda que­ vem a ser recuperada por Christa Wolf em Cassandra, e usada­ como metáfora da inutilidade de todos os conflitos ideológicos: «Só precisávamos de nos orientar pela nossa ­tradiçäo troiana. Mas como era ela? Em que consistia? Até­ que percebi: em Helena, que inventámos, defendíamos tudo­ aquilo que já não tínhamos. E que, quanto mais desaparecia, mais obrigados éramos a declarar a coisa real.» (p.108).

 

     A heroína de Cassandra, embora uma personagem muito ­secundária, pertence também à Antiguidade Clássica: é a ­mais requestada das filhas de Príamo e Hécuba, os reis de ­Tróia, uma sacerdotisa de Apolo. O deus, apaixonado, concedeu-lhe o dom da profecia mas, ao ver rejeitado o seu­ amor, transforma-o em maldição, e todas as verdades preditas ­por Cassandra não serão acreditadas. Os avisos que faz aos ­Troianos quando da chegada de Páris à cidade, o­ desaconselhar da partida deste para Esparta, e da entrada do­ cavalo de madeira adentro das muralhas, não são tidos em­ conta pelos seus concidadãos.

 

     O romance de Christa Wolf fala dos segredos e dilemas ­desencadeados pelo excesso de visão, e centra-se na viagem­ de Cassandra para Micenas, já uma das cativas de Tróia, ­dentro de uma gaiola de salgueiro. Durante este breve­ percurso, Cassandra – que sabe irá morrer com o seu captor, ­Agamemnon, às mãos de Clitemenestra – revê toda a sua vida:­ a infância, as relações com os irmãos, o pai, o seu amante ­Eneias, e com as outras mulheres; mostra também o outro lado­ da guerra, o sofrimento sem nome da cidade, a sua queda ­lenta, a degradação da vida e comportamento dos habitantes, o destruir de uma tradição.

 

     Conta-se aquilo que Homero, um grego (e logo, um dos ­vencedores), esqueceu, ou não soube narrar, porque a­ História ignora os vencidos. Curiosamente, são os derrotados ­de Ílion, os fugitivos chefiados por Eneias, quem vai dar­ origem a um segundo Império – o romano – e a uma outra­ epopeia, a Eneida de Virgílio. Assim, entre os dois grandes­ senhores da Antiguidade – Homero e Virgílio – vem inserir-se­ esta voz feminina que, mais de dois mil anos depois, nos dá­ uma outra perspectiva da História.

 

     Como Jean Giraudoux em La Guerre de Troie n'aura pas lieu ­(1935), Christa Wolf é seduzida pela história do que ­poderia, ou deveria, ter sido. Transformando em gente de­ carne e osso os nomes empoeirados e frios de um passado tão ­remoto, Cassandra tem lugar, de pleno direito, tanto ao lado­ de As Memórias de Adriano, de M. Yourcenar, como junto da ­trilogia sobre Alexandre o Grande da inglesa Mary Renault­ (Fire from Heaven 1971, The Persian Boy 1972, e Funeral ­Games 1981).

 

     História e literatura são actualizadas de um modo fascinante ­e profundamente humano – um livro a não perder.

 

Helena Barbas [O Independente, 12 de Janeiro de 1990, III p.31]


Cassandra - Christa Wolf, trad. João Barrento, Cotovia, Lisboa (1989)


 

 

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