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Carlos García - A Desordenada Cobiça dos Bens Alheios

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Carlos García


A Desordenada Cobiça dos Bens Alheios


Um elogio da cobiça a garantir que a excelente arte de furtar não nasce da pobreza

 

    A Cobiça — sinónimo ainda de ganância, avareza e inveja — é condenada na Bíblia desde Josué (7:20-21) e Job (31:24-25, 28). Está implícita nos Mandamentos 7º (não roubar) e 9º (não cobiçar a mulher do próximo), verbalizando-se no 10º: «Não cobiçar as coisas alheias». No Novo Testamento impede a entrada nos Céus (Coríntios, I-6:10; e Efésios, 5:5), pune-se com a morte (Romanos, 1:32). Institui-se no(s) cristianismo(s) como um dos sete pecados mortais e, talvez por ser o primeiro grande crime contra o próximo, tem fortuna nas representações medievas do Inferno. É assim um dos «não-valores» fundamentais da cultura judaico-cristã contra o qual se insurge, pela paródia, tanto este texto originalmente atribuído a Cervantes, quanto a portuguesa Arte de Furtar erradamente atribuída a Vieira.

 

    A Desordenada Cobiça dos Bens Alheios— Antiguidade e Nobreza dos Ladrões foi escrita em castelhano por um aragonês exilado em França, em 1619, e traduzida para o francês em 1621. O seu autor, Carlos García, talvez médico, nascido em 1580, esteve preso em Paris uns oito meses por ordem de Leonora Galigai, aia de Maria de Médicis.

 

   Foi durante ou após esse período, e/ou inspirado pelo meio penal, que lançou este seu tratado ao papel. Considera-se a Cobiça como exemplo da novela picaresca, mas será antes uma alegoria, a raiar o burlesco, da sociedade e da instituição penal setecentista.

 

   O livro divide-se em três momentos. No primeiro, um autor-narrador, preso, descreve o cenário a colegas de infortúnio, servindo-lhe de metáfora um Inferno decalcado das pinturas de Bosch. Consultor da «chusma» sobre os «dez mandamentos», é abordado por um ladrão que se lhe confessa por enigmas (numa «linguagem dos rufias a que chama ‘jacques’» — pág. 47) e que, em paga da atenção recebida, resolve discorrer sobre os seus talentos.

 

   Corresponde a segunda parte ao elogio filosófico da arte da ladroagem, superior à alquimia porque do nada faz tudo, privilegiada porque é apanágio de todas as classes sociais — «todos contribuem e lhe pagam tributo, trabalhando todos para ela» (pág. 56) —, louvada ainda pelos doces resultados — «colher o fruto que um homem não plantou e encontrar a colheita no seu celeiro, sem ter campo nem vinha» (pág. 59) — e facilidade — «Haverá maior nobreza no mundo que ser cavaleiro sem rendas e ter os bens alheios tão próprios que se pode dispor deles a seu gosto e vontade, sem que lhe custe mais que pegar-lhes?» (pág. 60).

 

   Continua com a história das suas origens divinas: o primeiro ladrão foi Lúcifer, o segundo foi Adão, ambos quiseram «roubar a ciência e sabedoria de Deus» e, como resultado, «puseram em crédito o furtar no mundo, por cuja nobreza e qualidade do furto que tentaram não podemos deixar de ver a singularidade e excelência desta arte; ambos deitaram o olho ao melhor que havia. E não podemos dizer que os incitava a furtar a pobreza e a necessidade, porque o primeiro era o mais nobre e poderoso de todos os anjos, e o segundo era o primeiro de todos os homens, rei dos animais e senhor absoluto da terra» (pág. 72). Daqui infere o autor o engano em que vive o mundo: «Crendo que foi a pobreza a inventora do furto, não sendo outros senão a riqueza e a prosperidade».

 

   Segue-se a terceira parte com exemplos práticos desta Arte hierarquicamente distribuída pelos vários ofícios, organizada em confrarias a seguirem o modelo medieval, com segredos e sinais de reconhecimento, acabando o capítulo XIII com os «Estatutos e Leis dos Ladrões».

Pode este livro servir de intróito à Arte de Furtar, que não foi publicada em Amsterdão em 1652, nem escrita por António Vieira, mas saiu anónima em Lisboa, talvez em 1743, talvez da autoria do jesuíta Manuel da Costa (Imprensa Nacional, 1991). Dois livros antigos cheios de actualidade.

 

Helena Barbas [Expresso, 2002]

 


A Desordenada Cobiça dos Bens AlheiosCarlos García - Trad. e introd. de José Colaço Barreiros - Antígona, 2002


 

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