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Bernard Henry-Lévy - Os Últimos Dias de Charles Baudelaire

Page history last edited by Helena Barbas 15 years, 5 months ago

Bernard-Henry Lévy


Os Últimos Dias  de Charles Baudelaire


Um romance sobre a agonia do poeta Baudelaire, afásico e auto-exilado na Bélgica.

 

1. Inicialmente mais conhecido como tradutor do americano ­Edgar Allan Poe, Charles Baudelaire (1821-67) é o grande­ poeta do simbolismo francês, tornado célebre pelo processo ­escandaloso que envolveu o seu principal livro de poemas, Les Fleurs du Mal.

 

   Editado em 1857, depois corrigido e aumentado pelo autor em 1866, este conjunto de versos marca ­a derrocada da estética romântica e o triunfo da «arte pela ­arte» que preconizara Théophile Gauthier, a quem o livro é ­dedicado. Aspirando à «poesia pura», liberta dos excessos ­emocionais dos seus predecessores, e das implicações ­utilitaristas já refutadas pela filosofia kantiana,­ Baudelaire propõe-se extrair «o belo do Mal», buscando, pelo­ satanismo, a resolução da dualidade humana, do conflito­ entre o físico e espiritual, entre arte e vida: «Viens-tu du ­ciel profond ou sors-tu de l'abîme, /ô Beauté! ton regard,­ infernal et divin, / Verse confusément le bienfait et le crime,/... / Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des­ astres?» [Vens tu do Céu profundo ou sais tu do abismo, / Ó ­Beleza! teu olhar, infernal e divino, / derrama confusamente­ o bem e o crime,/.../ Sais da voragem negra ou descendes dos­ astros? - «Hymne à la Beauté»].

 

   A exaltação do Mal, mais um anseio de totalidade do que uma­ atitude blasfema, revela-se, a par da defesa da­ racionalidade do trabalho poético, como fundamento do que ­virá ser a posição modernista. São estes dois grandes temas ­(embora a dimensão mística do primeiro não tenha sido correctamente entendida), alimentados pelo folclore biográfico criado em torno do «dandy» francês, que estão na­ base de alguns escritos de Eça de Queiróz - as Prosas ­Bárbaras, por exemplo - ou que esclarecem parte das opções ­poéticas de Gomes Leal ou de Cesário Verde entre outros. São ­eles ainda quem serve de fio condutor ao romance de­ Bernard-Henry Lévy.

 

   Assim, para entender Os Útimos dias de Baudelaire , como­ para entender parte da nossa poesia mais recente, torna-se ­necessária a leitura de Les Fleurs du Mal - de que não ­existe uma tradução no mercado português [em 1989] - bem como um­ conhecimento mínimo das desventuras baudelairianas que já interessaram Sartre, e como se prova, continuam a intrigar e ­a nutrir críticos e ficcionistas.

 

 

2. Este romance de Lévy pretende ser biográfico e, tal como ­se assume na epígrafe, coloca-se sob a égide de A Morte de ­Virgílio de Hermann Broch, retomando o tema da insatisfação ­com a obra que ataca o autor às portas da morte. A intriga ­centra-se na reconstrução, sucessivamente desmontada, do período imediatamente anterior à afasia e hemiplegia do ­poeta (a morrer de sífilis), no momento em que, voluntariamente­ exilado na Bélgica, este se questiona sobre as relações ­essenciais da arte com o real e a vida. As informações são dadas pelas personagens que mais de perto conviveram com o­ poeta, como o fotógrafo Charles Neyt, o editor Poulet-Massis, a dona da pensão belga Germaine Lepage, a ­amante Jeanne Lemer ou Prosper, dita Duval, a «négresse» dos ­poemas, além de um narrador anónimo, identificável com ­Mallarmé - todos eles caracterizados apenas pela sua­ linguagem.

 

   São os diversos testemunhos, por vezes apenas cartas ou diários, que iluminam as várias facetas de um­ mesmo acontecimento, tornando controversos os «factos reais» ­que alimentam a ficção biográfica. E o narrador aproveita as ­contradições, tanto para criar fortes momentos de tensão, quanto para evidenciar o contraste entre teorias literárias alternativas. Desencadeia-se, assim, um pluralismo de vozes ­e pontos de vista que acabam por se reunir no espaço da ­leitura enquanto diversos aspectos de um mesmo todo. A­ especularidade das personagens é realçada pela presença, ­secreta e avuncular, de Oscar Wilde - particularmente de O ­Retrato de Dorian Gray  - na importância do reflexo próprio ou do retrato do pai para o poeta, e deste último para o narrador, mas principalmente nas posições estéticas­ atribuidas a Baudelaire, sintetizadas na ideia de que o real ­copia a arte.

 

   O narrador revisita a obra para construir uma ­biografia, enquanto a personagem revisita o mundo para­ reconfirmar a obra: «Irei eu finalmente compreender, ­resmunga ele, que a cidade, o mundo, a realidade inteira só existem para nos falar das Fleurs du Mal?» (p.200).

 

 

3. Charles Baudelaire é um pretexto em torno do qual se ­congregam as grandes  interrogações sobre a arte formuladas ­no seu tempo, e que ainda hoje não foram respondidas. O seu­ é um conflito moderno, e vai explicitar-se pelo recurso, ­mais ou menos sub-reptício, às teorias literárias do ­presente, em especial no que respeita à condição do autor na­ passagem de homem de carne-e-osso a homem de papel. Assim, este será, também, um romance «de tese», cuja ideia central­ consiste no: «separar a obra da vida para lhe conceder um­ autor ideal, superior ao homem de todos os dias e que teria ­apenas uma remota ligação com o muito concreto herói da ­muito concreta biografia» (p.195). Estes pressupostos, afirmados como «mallarmianos», são também atribuíveis a­ Barthes, ou Michel Foucault (em «La Mort de L'Auteur»):­«existe um livro, Les Fleurs du Mal, que é o autor de um­ homem, Charles Baudelaire.» (p.191), e acabam a ser tão ­contestados quanto a oposta definição de literatura por­ Flaubert: «o melhor meio de escamotear uma existência» ­(p.182).

 

   A passagem do homem à sua voz, do pensamento às palavras, à ­petrificação que é a escrita, apresenta, como momento­ intermédio, a sobreposição entre vida e obra – os Últimos­ dias... dessa voz – que tornam irrelevantes os factos ­relacionados com a família natural (numa desmistificação da biografia), e fundamental a passagem à família literária. Os ­laços de sangue são substituídos pelos do espírito, e a ­biografia dá lugar à história da literatura. Mas também esta­ metamorfose é posta em causa, quando os discípulos ­literários não reconhecem a voz do mestre na edição póstuma de partes de um original inacabado: Pauvre Belgique.

 

 

4. Outros problemas se discutem, teóricos como o da ­inspiração e da fama, ou mais práticos, como os da tradução, ­da crítica, dos meios literários ou ainda a relação do autor com o público. É neste último ponto, ao enaltecer das­ estratégias que conduzem ao que é hoje o «marketing» do «best-seller», que Lévy se assume o «hipócrita leitor» do­ seu mestre.

 

   Jogando sobre o duplo registo entre a realidade­ e a ficção, a literatura e a história – e ainda a estética -­ Bernard-Henry Lévy abandona o ensaio político pela­ literatura: o seu primeiro romance, Le Diable en Tête - recebe o prémio Médicis em 1984. Este segundo romance, ­apesar de uma bem orquestrada campanha mediática – presença ­no programa «Apostrophes» em véspera de lançamento, artigos­ em publicações literárias («Lire», nº156, Set.1988; «Magazine­ Litteraire», nº258, Out.88) e mesmo uma entrevista na revista de moda «Femme» (nº38, Set.88), - não lhe conseguiu o ­ambicionado Goncourt do ano passado, que perdeu por dois­ votos.

 

 

5. Não se pretende, de modo algum, desvalorizar a qualidade ­da escrita e a originalidade do autor. Pelo contrário, dado­ a excelência do texto, lamenta-se que não tenha sido maior o­ cuidado editorial. Este é um romance que vive essencialmente­ de uma figura literária pouco divulgada entre nós. Já não se ­fala na oportunidade do lançamento complementar de uma ­reedição dos poemas de Baudelaire, mas exigir-se-ia, pelo­ menos, algumas notas de rodapé que esclarecessem os pontos­ mais complexos. Mínimo dos mínimos, era indispensável um­ prefácio informativo sobre o autor e as principais­ personagens.

 

   No que respeita à tradução, é também relativamente às ­personagens que terão surgido as maiores dificuldades, já­ que estas se definem pelo tipo de linguagem que utilizam. ­Exceptuando um ou outro momento no primeiro monólogo da ­senhora Lepage, António Guerreiro conseguiu respeitar e reproduzir habilmente os diversos jargões sociais.

 

Helena Barbas [O Independente, 13 de Outubro de 1989, III p.47]


Os Últimos Dias de Charles Baudelaire - Bernard Henry-Lévy, trad. António Guerreiro, Quetzal Editores, Lisboa (1989)

 

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