| 
  • If you are citizen of an European Union member nation, you may not use this service unless you are at least 16 years old.

  • You already know Dokkio is an AI-powered assistant to organize & manage your digital files & messages. Very soon, Dokkio will support Outlook as well as One Drive. Check it out today!

View
 

Antonio Piñero - As Heresias da Salvação

Page history last edited by PBworks 16 years, 11 months ago
    Antonio Piñero

As heresias da salvação - entrevista de Helena Barbas

 
   Todos os textos tidos por sagrados são, naturalmente, salvíficos. Basicamente, o problema da salvação em si corresponde à passagem de um lugar para outro, de preferência melhor, depois da morte. E, nalguns casos, há a ideia de que já se esteve nesse lugar (sempre um paraíso) do qual se saiu, caiu, foi expulso por algum motivo. Será por isso que se inauguram com um génesis, que é também uma cosmologia – como na Teogonia do grego Hesíodo, no Timeu de Platão, ou na Bíblia judaico-cristã.
 
   No panteão grego, em que os deuses se guerreiam, a degradação alastra a partir do espaço divino. No caso judaico-cristão, tendo como criador um único deus, perfeito, a falha primordial é atribuída à criatura – o desobediente Adão.
 
   Também os textos gnósticos se preocupam com a salvação do homem, com a relação que este pode manter com a entidade que imaginam o criou. E no seu conceito de criador tentam fundir aquelas tradições antagónicas. Por um lado, assumem a existência de uma divindade suprema una e perfeita (macho-fêmea), no topo da de uma hierarquia herdada de Platão e da Bíblia. Esta entidade e suas emanações («Éons») distribuem-se por um espaço simbólico: o «Pleroma», cuja última fronteira traz por nome «Limite». Deste para «baixo», até à terra, existe a zona sublunar (já de inspiração Aristotélica) habitada pelo Demiurgo – o criador do mundo material – e seus acólitos – os Arcontes/Planetas (herdados da astrologia e do panteão greco-latino). Em termos gnósticos, os males do mundo e do homem são justificados por um erro divino. E o tipo de erro divino vai variando conforme as seitas gnósticas.
 
   Há um caso curioso, em que o erro divino é tomar a decisão certa no momento errado. Nas versões mais divulgadas, uma das emanações, Sofia (a Sabedoria), tenta imitar o Absoluto (o único com o poder real de criar). Concebe assim um pensamento a partir de um reflexo de si própria, aspirando a reproduzir-se sem consorte, e dela sai o Demiurgo – «o aborto». Este vai depois ocupar-se das tarefas atribuídas ao seu homónimo no Timeu, construindo embora um mundo (mau) à sua imagem e semelhança.
 
   O cosmos gnóstico é pois altamente hierarquizado, tornando-se os seus textos enigmáticos ou difíceis de ler quando procuram inventariar todas as variantes das emanações divinas, organizando-as por todos os espaços – um exemplo dos seus ecos pode encontrar-se na Divina Comédia de Dante.
 
   Naturalmente que os homens tem lugar nesta hierarquia, mas à semelhança dos deuses, não são todos iguais – há os «hílicos» (materialistas), os «psíquicos» (os inquietos que podem vir a receber a revelação) e os «espirituais» (os mestres).
 
   Fomos falar com Antonio Piñero, famoso especialista em gnosticismo, responsável pela edição e tradução para o espanhol de muitos dos textos que agora também já podemos ler em português. Foi por ocasião do lançamento do Evangelho de Judas – publicado quase em simultâneo pela Ésquilo (trad. do espanhol), e pela Temas e Debates (trad. do inglês).
 
Sempre pensei que «hílicos», «psíquicos», «espirituais» eram nomes dados a fases de uma evolução individual. Mas no seu prefácio define-os como «gentes», «raças» sem evolução possível – uma condenação?
Trata-se de uma autêntica predeterminação. Mas um pré-determinismo não completo. O espírito está ébrio ou adormecido. O salvador é aquele que acorda essa centelha interior.
 
O autor do Evangelho de Judas dá a impressão de que um «psíquico» poderá passar a espiritual…
Pode dar essa impressão. Mas, o ataque aos «psíquicos» – por antonomásia, o ataque aos discípulos, à igreja, aos sacramentos da eucaristia e do baptismo – é tão duro, que essa impressão se torna muito duvidosa. E depois temos o apoio da maioria dos outros textos gnósticos. Em particular no Livro Secreto de João e outros, como A Sabedoria de Jesus Cristo, os autores da linha «sethiana» esforçam-se verdadeiramente por salvar o demiurgo. Aqui não, pelo que o predeterminismo é total.
 
Mas há aqui um momento em que o «espiritual» pode cair, pode regredir, pode enganar-se – isso indicaria uma circulação entre os graus?
Na verdade trata-se de uma exegese muito rigorosa do texto do Novo Testamento: «Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos» (Mateus, 20-16). Nos gnósticos, toda essa construção parte de textos que são sagrados. O gnóstico é o único que se atreve, dentro de um certo ramo, a alegorizar selvaticamente sobre os textos sagrados. Nunca parte de textos que não o sejam – no fundo, a revelação é uma revelação do livro.
 
Quais são os textos sagrados para esta gente?
Evidentemente, o primeiro texto é o Timeu, de Platão. Tem o mesmo valor que os escritos de Homero para os Estóicos – eram textos sagrados. E alegorizavam sobre eles porque eram sagrados. O segundo, embora com dúvidas, seria o Antigo Testamento. Outro virá a ser o Novo Testamento que, por volta do ano 150 – na minha opinião, data provável do original – já tinha uma certa consistência, em particular a tradição das palavras do Senhor (Jesus) e Paulo.

 

Se cada indivíduo tem em si uma centelha do divino, tem que ter (ou ser) o divino na totalidade. É uma das hipóteses de Marcilio Ficino (1433-1499). Deus não pode dividir-se, o todo está em todas as partes. A centelha seria uma espécie de holograma da totalidade, e o indivíduo sempre deus…
Não. O gnóstico resolveu isso claramente. A divindade é única, só, e transcendente. Mas pode projectar-se enquanto luz, como uma luz, continuando a ser um farol. Absolutamente único, mas a projectar essa luz. Uma dessas projecções, ao nível da plenitude divina (dentro do Pleroma), mas num grau inferior (a um segundo nível, num quarto extracto), existe a identidade divina como ideia arquetípica do homem. Tudo isto é puramente platónico. Essa ideia arquetípica do homem é uma emanação da divindade como luz, e o ser humano é a realização, em sombra, do arquétipo. E dado que o arquétipo é divino, o ser humano tem a possibilidade de ser divino.
 
Mas em termos platónicos, enquanto sombra do arquétipo é uma degradação, e não tem hipótese de regressar…
Sim, é certo. Mas esta sombra tem uma parte de sombra e uma parte de luz. A parte da sombra, é a parte do arquétipo que corresponde ao corpo e à alma. A parte de luz, que está rodeada de sombra, é a única que, na verdade, ascende à plenitude. Quando morre um gnóstico, o corpo e a alma perecem, mas o espírito une-se plenamente com a divindade, por semelhança, mas fora da divindade. Nunca penetra na divindade, está na plenitude da divindade, mas na verdade, a divindade é inacessível. Quando chega à plenitude, o gnóstico está dois graus mais abaixo. Chega até um ponto mais abaixo do arquétipo, mas dentro do Pleroma. Os sethianos explicam isto claramente ao introduzirem o «Éon» Limite. Este tem por única função é simplesmente confinar o mundo inferior – separar o mundo pleromatico do mundo não pleromatico. Quando o gnóstico chega ao Pleroma, cruza o Limite, mas fica em baixo. A divindade está em cima. Não lhe toca, mas pode contemplar-lhe a luz.
  
Nessa perspectiva, a salvação nunca é completa?

É completa na medida em que cada uma das naturezas o permite. Somos perfeitos e completos ao nosso nível, mas não somos deuses. Nalguns sistemas, a salvação do psíquico é perfeita e completa ao seu nível, mas fica abaixo da Lua. É um lunar, mas a salvação é perfeita e completa dentro das suas aptidões. Nós, como gnósticos, temos um alcance muito inferior ao da Sofia. Há uma hierarquia total. Os sethianos procuram dizer que essa hierarquia é real, e ao mesmo tempo se trata apenas de modos da divindade. Parece uma contradição, mas uma vez que se adopta a linguagem simbólica, se passa ao campo do simbólico, então percebe-se claramente o que estou a dizer. O gnóstico transcende o Limite, mas fica abaixo.

 
Também aqui o fogo divino é dado ao homem pelo Demiurgo, quando nalguns textos são centelhas da «explosão», ou uma projecção da divina Sofia…
Trata-se de uma vingança de Sofia porque, apesar de o Demiurgo ser filho dela, nasceu no espaço inferior. Aborrece-o porque o seu filho é adulterino, por ter sido concebido sem a vontade do pai, por ser partenogenético. Foi concebido sem o seu par, e aqui o perfeito é o par.
 
Jesus é também o herói neste Evangelho. O que pensa desta nova tendência para a demanda do Jesus Histórico?
Não é nova. Nunca houve, desde finais do século XIX, qualquer momento sem investigação sobre o Jesus Histórico. A nova tendência é uma falsificação feita principalmente por ingleses e alemães para realçar a «sua» busca pelo Jesus Histórico – como se nunca tivesse existido qualquer outra. A «primeira demanda», a «segunda demanda», a «terceira demanda», são puras falsidades. Estritamente falso.
 
Mas será possível, a partir apenas do Novo Testamento, apanhar o substracto histórico, a tradição?
É totalmente possível. A ideia de que não seria possível é um dogma da escola alemã da «História das Formas», um postulado de Martin Dibelius (1883-1947) e Rudolf Bultmann (1844-1976), que durou de 1919 até 1950. Ainda dentro dessa escola, a partir dessa data, o famoso Ernst Käsemann (1906-1998) elimina a ideia. E o que fica dela? Que devemos ser cautos com o que afirmamos sobre Jesus. É mentira que haja agora uma nova demanda. O que se passa é que aos alemães e aos ingleses interessa-lhes dizer que são eles os primeiros da ciência teológica, desprezando portugueses, franceses, espanhóis, italianos, etc., que só os anglo-saxões são sérios.
 
E acha importante procurar a figura histórica de Jesus?
Em segundo lugar, e não sou crente, daria a minha mão direita em como podemos reconstruir o fundamental do Jesus histórico. Os Evangelhos são duplos. Por um lado são uma manifestação de fé, mas por outro, são uma correcção a Paulo. Paulo insiste, dogmaticamente, apenas no valor salvífico da Morte, no sacrifício e Ressurreição de Jesus. E os Evangelhos dizem, implicitamente, que toda a vida de Jesus é salvadora. Por tal é necessário fazer uma Proclamação, mas ao mesmo tempo é necessário fazer uma História. E justamente, com essa parte de história, ao serem quatro Evangelhos os mais antigos, temos a possibilidade de fazer comparações. Com uma aplicação sistemática de instrumentos críticos, de critérios heurísticos, de ver as probabilidades do que pode, ou não, ser certo, dava a minha mão direita como temos claramente uma imagem do que Jesus não poderia ter sido.
 
É então uma imagem pela negativa?
Por exemplo, segundo a minha opinião, não poderia ter sido um filosofo cínico. Não poderia ter sido um homem a-religioso. É impossível afirmar que o centro da predicação de Jesus não foi o reino de Deus. Há certas coisas de que temos a certeza que não ocorreram. E há uns oito acontecimentos centrais da vida de Jesus que podemos afirmar, jogando a vida, que são certos. E a prova máxima é que, se os Evangelhos tivessem sido pura proclamação de fé, não se veria de modo tão claro como os seus autores lutam continuamente para acomodar a personagem de Jesus à ideia preconcebida que têm dele. Vê-se a fractura, a luta. Se eles tivessem inventado algo como o Cristo da fé, não notaríamos que realmente existem tantas inconsistências, em particular no Evangelho de Marcos. Jesus aparece como puramente humano, um homem que se irrita, que se aborrece, que discute com os discípulos, que não está de acordo. Decerto teriam inventado outra coisa.
 
Disse que não era crente – porque se dedicou então a este tipo de estudos?
Porque sou um racionalista. Poderia ter ido para a Filosofia. Mas, pessoalmente, foi um interesse realmente filológico. Foi a possibilidade de publicar em Espanha uns textos muito importantes que eu conhecia e eram absolutamente desconhecidos. É um motivo pedestre, o interesse de dizer vou publicar algo de novo.
 
Não teve problemas na altura? – a sociedade espanhola é tão católica quanto a portuguesa…
Só há problemas com a Igreja se nos metemos com os Bispos, com a hierarquia. O resto é gratuito. Pode negar-se a Trindade, pode negar-se a divindade de Jesus, pode negar-se o que se quiser, se se deixar tranquila a hierarquia não haverá problemas. Eu faço um trabalho rigorosamente histórico, resgato textos, edito-os, traduzo-os, interpreto-os, e explico-os é tudo. Cada um que pense o que quiser.
 
E todos estes textos que estão a aparecer, a ser revelados, a dar origem a filmes, é uma situação particular de época, ou sempre existiu e não se deu por isso?
Agora é muito mais fácil. A Igreja Católica foi dessacralizada, desmitificada, já não é um referente cultural, literário e ideológico. A maioria do imaginário, o marco ou referente cultural dos jovens é o mundo da ficção cientifica, da ciência do universo, da biologia, da genética, e em geral da astrofísica, etc. Por isso a Igreja fica mais a descoberto para sofrer ataques. Ao mesmo tempo, trata-se de uma reconstrução puramente psicológica. Nalguns países a Igreja tem a pretensão de continuar a dominar as consciências. As pessoas que, no fundo, têm alguma animosidade contra a Igreja, se têm oportunidade aproveitam-na para a atacar. E aproveitam bem, porque lhes sai grátis. Se a Igreja fosse o Islão, não a atacariam porque aí não lhes sairia grátis. O elegante é expor as coisas simplesmente como creio que o fazemos. E cada um que pense o que quiser - não me dedico a atacar a Igreja.
 
Neste seu livro refere os atropelos que estes manuscritos sofreram – há um sub-mundo de contrabandos e roubos? Tem experiências desse tipo?
Pessoalmente não, porque quando estes textos aparecem publicamente todas essas tropelias já aconteceram. O primeiro contacto que tive com os textos foram fotografias, segundo a edição de Robinson. Porém havia já algumas edições parcelares feitas por Édouard Menard e sobretudo franceses. Quando entro em contacto com os textos já tínhamos os treze códices controlados e fotografados.
 
Então a ideia do investigador como Indiana Jones, foi um golpe publicitário?
No caso do Evangelho de Judas, o investigador aparece mais como um tonto. Primeiro, Stephen Emmel, o eminente papirólogo americano, não deu logo conta da importância do manuscrito, porque não teve oportunidade de ver a primeira página. Só viu o centro. Depois, a universidade de Yale teve o manuscrito nas mãos, e não o comprou. A única pessoa inteligente é a senhora Nussberguer Tchacos, que compra o manuscrito por trezentos mil dólares, e no mês seguinte o vende por um milhão. A direcção da National Geografic também foi inteligente, ao apoiar a segunda compra, e passar os manuscritos para a Fundação Mecenas. Foram eles, mas com sentido comercial. O investigador nunca foi um Indiana Jones.
 
Para si, qual é a diferença maior entre a sua tradução e as outras que existem – falou na de James E. Robinson…
A nossa tradução – da Sofia e minha – foi a única que foi feita exclusivamente tendo diante o texto em língua copta, e sem dicionário algum. Corrigi e controlei, mas não foi cotejada com outras, nem com a inglesa.
 
As outras traduções são tendenciosas?
Não. Não me atreveria a dize-lo. Mas esta é pura.
 

Entrevista parcialnente publicada no Expresso, 2006 - vide O Evangelho de Judas 
  

Comments (0)

You don't have permission to comment on this page.