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Arturo Pérez-Reverte - A Honra dos Códigos

Page history last edited by PBworks 16 years, 11 months ago

  Arturo Pérez-Reverte


A honra dos códigos - entrevista de Helena Barbas


Uma visita com Arturo Pérez-Reverte ao narcotráfico

 

   Arturo Pérez-Reverte já nos habitou a personagens fortes, que se movem em espaços e tempos pouco ortodoxos - recorde-se O Mestre de Esgrima, A Tábua de Flandres ou O Clube Dumas (aqui a passear-se alegremente pelo «bas-fonds» do tráfico de livros). No seu último romance, A Rainha do Sul, acompanhamos a história de Teresa Mendoza, pseudo-heroína de um «narco-corrido» mexicano pelo submundo do tráfico de drogas.

 

Nos seus livros há uma preocupação especial com os submundos da ilegalidade - neste temos um mergulho no do narcotráfico...

Neste caso queria contar o conflito de uma mulher que luta para sobreviver, fazer uma viagem ao coração de uma mulher ponto final. Podia ter escolhido o mundo do jornalismo, da moda, da cultura, do cinema. Mas no narcotráfico o conflito é muito mais evidente. É um mundo muito masculino, com regras muito perigosas. Com mais possibilidades narrativas. O meu objectivo é falar da mulher. O narcotráfico é um acidente, um pretexto narrativo, um território.

 

Mas estes seus territórios são perigosos e dados de um modo muito cru, muito próximo da verdade das coisas - nunca teve problemas?

É um mundo que conheço bem. Não sou um jornalista nem um romancista inocente. Conheço os lugares, os meios. Durante 21 anos fiz reportagens de guerra. Tenho amigos que são traficantes, polícias corruptos, fiscais, juízes, branqueadores de dinheiro. Esses mundos são-me familiares, movo-me neles com à-vontade. Nunca houve perigo nem riscos. Sabia muito bem com quem estava e onde estava.

 

Não o incomoda dar uma aura estética a todos esses universos... «maus»?

Não. Ter-me-ia preocupado o contrário: fazer um juízo moral sobre esses mundos. Um romancista não é um ensaísta, não tem um compromisso intelectual, a não ser que o queira assumir. Saramago (é um amigo meu) tem um compromisso intelectual, moral e ético. Nos romances, é fiel a esse compromisso. Parece-me bem. Céline, que era um fascista, tinha um compromisso com uma ideologia. Eu não. Não vou para o romance dar um ponto de vista moral sobre o mundo, vou contar a peripécia de um ser humano nesse mundo, muitas vezes hostil.

 

Não pretende ser moral?

Não. O que faço é contar a ética desse mundo. Não crio paradigmas, nem símbolos, nem exemplos a seguir. Adopto a ética das minhas personagens. Nenhum traficante, quando mata, diz: «Ai que malvado que sou. Quando mato, quando trafico, que perverso, que revolta tenho!» Para ele, isso é normal: é trabalho. Apresentar assim a personagem é honesto. Desonesto seria aplicar pontos de vista exteriores; por exemplo, rodear o tráfico de negros do século XVIII com os critérios da ética do século XXI - isso seria falso.

 

Portanto, aqui usa os códigos do mundo do narcotráfico?

Paradoxalmente, os narcotraficantes, os grupos marginais, os delinquentes em geral têm códigos muito estritos: o silêncio, a lealdade, a disciplina...

 

Que são os da nossa sociedade...

O que se passa é que, muitas vezes, o delinquente é mais fiel aos seus códigos do que nós, pessoas presumivelmente honradas, somos aos nossos. Há mais lealdade aos códigos e às regras nos grupos marginais do que nos grupos socialmente correctos.

 

Há o orgulho da profissão?

É muito interessante assistir à dignidade do delinquente, à lealdade do assassino. Na minha vida profissional conheci mercenários (alguns portugueses, por acaso, em Angola e Moçambique), e a dignidade e profissionalismo do mercenário, do delinquente sempre me fascinaram muito. Está nos meus romances.

 

Falando de profissionalismo, falou do peso das leituras de uma vida - não se pode escrever sem se ter lido muito?

Ninguém pode pintar como Picasso se antes não conhece Rembrandt, El Greco, Velásquez, Botticelli, todos os grandes. Nenhum autor que não conheça o romance do século XIX, por exemplo, Eça de Queirós, Galdoz, Dickens, Balzac, pode ser um romancista.

 

Disse também que a sua Teresa Mendoza teria de ultrapassar Ana Karenina e Madame Bovary.

Não foi isso que eu disse. Citei Virginia Woolf - que nas obras-primas da literatura, personagens como Ana Karenina ou Ema Bovary, na realidade, eram Tolstoi e Flaubert, homens travestidos, não eram mulheres. Estava consciente desse perigo quando escrevi este romance e queria criar uma mulher verdadeira, em que uma mulher se pudesse reconhecer. Para mim, Ema Bovary é uma espécie de mulher que não me interessa, é uma estúpida, nunca senti compaixão por ela. Por Ana Karenina é mais complicado. Mas eu não queria cair nesse tipo de personagem. Queria contar a história de uma mulher que luta para sobreviver num mundo de homens.

 

Diria que a sua Teresa está mais próxima da Moll Flanders de Daniel Defoe?

Não sei se todas as mulheres são assim, mas queria descrever uma mulher que é um soldado perdido em território inimigo. Creio que o último herói realmente romanesco que resta à cultura ocidental é a mulher. Reúne todas as características: tem de trilhar o mundo dos homens com regras feitas pelos homens; tem de ser tão ou mais eficaz que eles; os erros delas pagam-se mais caros do que os dos homens e, ao mesmo tempo, não deixa de ser mulher, de conservar toda a sua herança biológica, aquilo a que chamo «instinto de ninho».

 

Falou muito de livros, mas o cinema também marca bastante os seus livros - que filmes poderia nomear?

Eu sou de uma cultura que vem do cinema. Comecei a ver televisão com 12 anos. Para mim, o cinema importante é o tradicional, o clássico norte-americano e os filmes europeus dos anos 40 e 50. Mas são sobretudo os livros. Nasci numa casa com uma biblioteca muito grande, cresci entre livros e descobri desde muito pequeno que os livros são uma explicação para o mundo. Quanto mais se lê mais vitaminas se tem, mais recursos se adquirem para enfrentar a vida, para sobreviver. E isso, para mim, foi decisivo.

 

A Rainha do Sul também já vai a caminho do cinema. Como sente a relação entre os seus textos e os guiões?

De distância. Não são os meus livros. Não me sinto moralmente vinculado nem responsável. Há um amigo meu, o Roman Polanski, que fez A Nona Porta (adaptação de O Clube Dumas), mas é o filme dele. Dizia-me: «Quero que me contes como escrevias.» Eu respondia-lhe: «Não, Roman, é o teu filme, não é o meu livro. Quando sair o filme, vai ser de Polanski e não de Pérez-Reverte.» Quando os vejo, se gosto digo bem, se não gosto não gosto.

 

E tem gostado?

Já são sete filmes. De uns gostei mais, de outros menos. Nenhum me deixou completamente feliz, mas nunca saí a meio.

 

Há romances seus que podem ser descarregados directamente da Internet - acha que é mais um bom meio para contar histórias?

Para deixar clara a minha posição, eu caço sozinho. A Internet não me interessa. Tenho o meu território narrativo, movo-me nele e não me preocupa o que há em redor. Sou herdeiro de uma tradição literária europeia, mediterrânica, estou orgulhoso da minha memória, que é a Bíblia, o Islão, Grécia, Roma, Portugal, Espanha. Sou um escritor do século XIX que nasceu um pouco tarde no século XX.

 

Mas escreve num computador...

Sim, claro.

 


[Expresso 1619, 2004]

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