Gil de Carvalho
Uma Antologia de Poesia Chinesa - do Shijing a Nalan Xingde
Uma pequena e bela amostra de uma escrita mal compreendida
Traduzidos directamente do chinês clássico, estão coligidos nesta antologia 51 poemas que abarcam um período de 27 séculos – de 1000 A.C. ao séc. XVII. Trata-se, de facto, de «uma gota de água» como nos diz Gil de Carvalho no prefácio, onde igualmente reconhece a subjectividade da sua escolha.
Não se minimize, todavia, um trabalho verdadeiramente «hercúleo». Para além das dificuldades de entendimento e tradução de uma poesia oriental, este caso é particularmente complexo dado a linguagem utilizada ser muito antiga, e não existir informação sobre grande parte do período de escrita. Por exemplo, em 206 AC. o déspota Shih Huang Ti ordena a destruição de todos os livros excepto os de agricultura e medicina. Deste holocausto restaram cerca de 300 poemas dos perto de 3.000 que constituíam o texto original de O Livro dos Cantares ou Shijing - a grante compilação confuciana.
A falta de informação é agravada por um outro problema. Sabe-se que a poesia chinesa é essencialmente musical, revelando elaborados jogos de sonoridades – para Burton Watson é o primeiro testemunho do uso da rima em qualquer literatura (Early Chinese Literature, Columbia U.P., New York & London, 1962). E as suas regras permanecem quase imutáveis: Mao Tsetung compõe ainda na forma «tzu», «lushih» e «chueh chu» originadas na dinastia Tang (618-907).
Cada poema é composto segundo uma melodia estipulada que prescreve, rigorosamente, tanto um padrão tonal quanto um esquema rítmico, sendo o número de versos, e o número de caracteres por verso, determinados pelo tipo de estrofe.
Depois, a linguagem dos poemas agora traduzidos: «por natureza concisa e rítmica, que nos dá em cada caracter o sentido e não a pronúncia...» (p.18) é ‚ apenas escrita visual e não sonora ou fonética. Neste aspecto, o trabalho de Gil de Carvalho é francamente positivo, tanto mais que, implicitamente, patenteia uma certa discrepância entre o resultado da sua tarefa, e o peso dos pressupostos modernistas que regem o conceito europeu de poesia oriental. Recordem-se as traduções de Ezra Pound a partir dos estudos de Fenollosa onde, talvez por influência do budismo zen, se confunde poesia japonesa e chinesa.
Os modernistas ignoram as sucessivas repetições sonoras desencadeadas, não apenas pela rima, mas pelo reiterar de versos inteiros, numa construção claramente paralelística. Ignoram ainda as repetições especulares do mesmo termo, que criam redundâncias de musicalidade e sentido. Os poemas chineses, ao contrário dos japoneses, constroem-se na tentação do monocórdico, que é evitado, em última instância, pelo aparecimento de um sinónimo com homofonia diversa. O prazer que deles resulta é muito diverso do retirado pelo encontro com a imagem de um "haiku" japonês. Nem a sua apresentação é instantânea, nem dá origem ao sentimento de libertação súbita – metáfora do «satori» do zen.
O jogo chinês centra-se no prolongamento das sonoridades no tempo, na recusa de um fim abrupto e no desejo de explorar um mesmo grupo de sons a partir de várias perspectivas. Estes processos estão presentes nalguns dos poemas agora traduzidos: «Folhas secas, folhas secas/ O vento é que vos levanta/ Ah irmãos, meus irmãos,/ Cantai vós, eu de seguida.// Folhas secas, folhas secas,/ O vento sopra-as p'ra longe / Ah irmãos, meus irmãos,/Cantai vós, depois sou eu.» (p.32).
Embora justificadas, lamenta-se a ausência de notas aos poemas e de uma tábua cronológica mais desenvolvida que poderiam enriquecer mais ainda este trabalho.
Helena Barbas [O Independente, 19 de Maio de 1989, III p.52]
Uma Antologia de Poesia Chinesa - do Shijing a Nalan Xingde, trad. Gil de Carvalho, Assírio & Alvim, Lisboa (1989)
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