Ana Teresa Pereira
O Mar de Gelo
Uma belíssima história sobre os gestos do amor
Ana Teresa Pereira reincide no tema do amor eterno: «Em todos os livros há duas pessoas que estão ligadas como se conhecessem há muito tempo» (pág. 49). De novo o que interessa não é tanto a intriga em si, mas o modo como é contada.
Trata-se de uma «história de amor entre três pessoas», que podia cair no banal triângulo amoroso, ou no ainda mais banal adultério, mas não. Tudo se passa entre um casal de actores - Katie e Clive - que se conhecem desde a infância; foram o rapaz/a rapariga da casa do lado. Clive escreve peças de teatro que Katie vai protagonizando e em que ele próprio também entra. E depois há Tom, um escritor de sucesso, ex-professor em Oxford. Todos tentam ter êxito nas suas artes. Subordinam-lhes as suas vidas, e não é possível distinguir onde começam umas e acabam as outras. «Era bom para o trabalho. Observar os outros. O rosto de uma pessoa quando pensa que está sozinha. Quando pensa que não está a ser olhada. Um gesto, uma expressão, um olhar, podiam ser reproduzidos mais tarde, num palco, e ganhar uma importância que nunca haviam tido. Era um pouco assim que compunha as suas personagens, pedaços de si própria, pedaços dos outros. E também era interessante ver a reacção de uma pessoa quando percebia que estava a ser seguida todas as noites» (pág. 43).
Mas este processo pode ser perigoso: «Katie, que se transformava em tantas mulheres, Miranda, Stella, Hilde, Cecily, por vezes tinha medo de não ser ninguém. De ter escolhido aquela profissão para fugir ao vazio, à falta de identidade. Talvez com um escritor acontecesse o mesmo» (pág. 59). O entendimento entre as personagens assim o insinua. Katie procura seduzir Tom, com quem já tivera um caso quando era estudante, e que não se recorda dela. Vai então segui-lo pelas ruas escuras de Londres, pelas livrarias e jardins, suscitando encontros de olhares fortuitos que foram premeditados. Encena os gestos do relacionamento amoroso: «Eram actores profissionais e a paixão tornava-se fácil de representar. O mundo é um palco e eles tinham consciência disso. No fundo, muito no fundo, sentiam-se superiores às outras pessoas. Porque eles sabiam que era só uma peça» (pág. 13). Todas as hierarquias são invertidas, subvertidas, subordinadas à verdade de cada par de amantes: «Katie bebeu o chocolate lentamente. Não, nenhum deles criava algo para ficar. Estavam de passagem e não deixavam marcas. A única forma de serem eternos» (pág. 27). Um estranho e paradoxal elogio do efémero.
Helena Barbas [Expresso, 2005]
O Mar de Gelo - Ana Teresa Pereira - Relógio D’Água, 2005
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