Alberto Pidwell Tavares
Lunário
Uma primeira experiência do futuro Al Berto pelo território da prosa
Este texto é-nos oferecido como a sua "primeira incursão" nos domínios da prosa. Não se trata então de um romance, nem de uma novela, nem de contos, mas de um «micro-romance»? É uma narrativa composta por sete "capítulos",unidos pela presença do "eu" narrador, Beno. Este dá, sucessivamente, preponderância às outras personagens, revelando-as como principais, em cada um dos diversos encontros-capítulos: Lúcio e Gazel, o par homossexual, em «Crepúsculo», Nemú, o rapaz sem nome em «Lua Nova», o regresso de Alba, a mãe do seu filho Silko em «Quarto Crescente», a morte e «ressurreição» de Kid, em «Lua Cheia», a companheira de bar Zohía em «Quarto minguante» e, por fim, a viagem e regresso de Alaíno em «Úmbria». «Cântico» – um encontro do «eu» consigo próprio? - corresponde a uma síntese, a reunião final dos diversos fragmentos do sujeito (os «heterónimos»?) que – como a imagem das fotografias o repete ao longo do texto – cada personagem representa.
No último «capítulo» encontra-se a solidão derradeira, que é a mesma do início, de que sofre Beno-narrador. A narrativa revela-se então como uma viagem pelo passado, uma viagem imaginária idêntica e paralela à que nos é narrada em «Crepúsculo»: «Aqui estou eu... só, dentro e fora de mim, último passageiro da minha noite interior. E reprimiu as lágrimas, apertando a pequena mala de viagem contra o peito» (pp.14) - diga-se de passagem, que esta mala é de couro azul.
Todos os encontros, desencontros e cruzamentos que se dão no «outro lado da noite», no mundo dos bares e da droga, têm por base um relacionamento sexual – homo ou hetero, não interessa - embora o narrador afirme: «Nunca tivera necessidade de justificar ou afirmar a sua sexualidade – como alguns dos seus amigos o faziam até ao cansaço e à vulgaridade, com espavento.» A este parágrafo, que parece resumir o que poderia ser uma autocrítica, segue-se um outro, interessante: «A "moral" era uma treta que não lhe dizia respeito. Era alheia, pura e simplesmente alheia. O que sempre o fascinara e seduzira era o amor, a amizade e a paixão...» (pp.71).
A «treta» contra a qual Lunário se insurge está claramente explícita na página 82, e é a outra faceta de si próprio. Admitamos que, no momento em que os «travestis» tomam descansadamente a sua bica matutina na Brazileira, pruridos de «moral» deste tipo não fazem sentido. Só o fazem em termos de linguagem literária, quando se explora como novidade os «clichés» importados da América, lá pelos finais dos anos sessenta, com muito «hippismo» e «beatific generation» à mistura. O caso é que, assumir posições que num determinado momento se revelaram como meritoriamente anti-convencionais se pode transformar, mais tarde, num lugar muito comum. Poder-se-ia ainda tentar inscrever este livro numa linha de tradição transgressora mais europeia, mas falta-lhe a preocupação social e a ironia de um Genet, o misticismo sublime de um Pasolini, ou a candura do discurso de um Ernesto Saba. Estar «contra» com vinte anos de atraso já é folclore, e continua a funcionar como literatura.
E se a literatura é actualmente associada à ideia de «trabalho» sobre a linguagem, o problema deste texto será a falta de laboração sobre a sua matéria-prima. Sem pretender «espiolhar a gestão das vírgulas», é impossível que não se repare nas mesmas ideias, a repetirem-se pelas mesmas palavras (pp. 86 e 114); na escassa «música de fundo» dos Velvet Underground (pp. 47 e 91); enfim, na pobreza vocabular e no «kitsch» de algumas falas: «Peço-te, promete-me, nada de soluções finais. Conheço-te o suficiente para não acreditar numa tentação tua para... bom! sobretudo não deixes que o Nemú ande por esse mundo com o peso de um morto no coração. O Nemu ama-te, amar-te-á sempre, como eu, como o Kid...» (pp.79)
Helena Barbas [Europeu, 1988]
Lunário - Alberto Pidwell Tavares, Contexto, Lisboa (1988)
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