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Abel Neves - Asas para que vos quero

Page history last edited by Helena Barbas 10 years, 9 months ago

 

Abel Neves


 Asas para que vos quero


Um romance mágico sobre a insuspeita dignidade do homem no mundo

 

   Vindo do teatro, Abel Neves reincide no romance. No irónico Corações Piegas (Cotovia, 1996) fez-nos uma quase caricatura da Lisboa revolucionária. Agora, em Asas para que Vos Quero, noutro registo e a ritmo bem mais lento, espraia as suas personagens pelo país, de Norte a Sul. A principal e louvável diferença entre estes dois livros exibe-se na troca da temática urbana pela regionalista. Aproxima-se assim dos espaços de José Riço Direitinho, envereda por áreas que evocam os ambientes de António Manuel Venda, mas distingue-se claramente de ambos revelando-se inconfundível. 

   O romance abre como se de um livro de contos se tratasse: a indicação dos capítulos não é numerada; o segundo inicia-se com uma história aparentemente alheia à do primeiro. Mas as ligações começam a insinuar-se por breves referências. Bocados de cenas prévias que se vão incrustando nos episódios seguintes, entrançando-se com eles, transformando esses fragmentos no alicerce de um todo que, no final, se afirma como circular. Este é um dos primeiros prazeres do livro. Outro, é acompanhar o percurso do herói, talvez um Daniel. 

   Há um Daniel que abandona uma relação estável com uma Teresa Maria, uma senhora da terra em Castelo de Vide. Sai calmamente de casa, deixa o conforto da quinta abastada a caminho do Norte. Pede boleia: «O trigal está atrás e à frente de si, do mesmo modo que a estrada o tem dos lados. Não sabe quando chegará a Lisboa e se o Mustang que passou há vinte minutos tivesse parado estaria agora vinte minutos mais perto, e de quê? Estaria, se o Mustang continuar a rolar segundo a perfeição dos motores e a lei do inexorável sem contratempo.» (pág. 9). 

   Mas o mundo não é comandado por estas leis da Física inventada pelos homens. Há contratempos, imperfeições, coincidências. E são estes outros (des)regramentos que regem as vidas. O herói acaba por apanhar boleia de um Morris Minor 1000 preto, guiado por um outro Daniel que o transforma em seu inesperado ajudante - um septuagenário, também nómada, fã de Gary Cooper, que dedica a vida e exibir filmes de terra em terra. 

   Uma primeira das várias duplicações de entre personagens. A repetição dos nomes próprios começa por transformá-las numa espécie de madrinhas, guardiãs umas das outras. Depois sugere estranhos laços familiares - que o narrador reforça com relações quase incestuosas nos capítulos finais. Uma (con)fusão que leva a que se condensem nos dois géneros base da espécie: o masculino e o feminino. Homens e mulheres reduzem-se - ou crescem - até ao macho e fêmea primevos, em luta e conjunção - separados por leis tão fabricadas como as que impõem a perfeição aos motores; unidos por uma força nascida das profundezas da terra, alheia ao espaço e ao tempo, e que pode mostrar outros mundos dentro do mundo. 

   Daniel, como depois Leonardo(s), e também as Teresas, obedecem àquelas ondas telúricas. E cada um dos caminhos que são as respectivas vidas, desenham-se e cruzam-se segundo ocultos desígnios de não traçados meridianos da terra. Mas também os outros, sem o saberem, lhes ficam sujeitos. Desta simbiose que se julga perdida, surge a possibilidade mágica da ligação entre todas as coisas a dar dimensões insuspeitadas aos movimentos mais comezinhos - gestos de vida, como o cozinhar de um inóquo pâté, que o narrador, pela simultaneidade, explora exemplarmente fazendo-nos associá-lo à tragédia de um acidente mortal. 

   Assim, a novidade vem da generalização do laço mágico. No campo, ou na cidade, as almas que têm asas correm os mesmos riscos - ou não:«É sempre perigo quando a ave entende os humanos passos e abre as asas para num instante poder ser alvo. Podia acontecer a plumagem tingir-se logo dum vermelho líquido e podia acontecer ser Domingo, e era, Domingo era para a sua morte uma coisa indiferente e podia acontecer a outra e não a essa porque, claro, um caçador podia ter na mira outra perdiz.» (pág. 44).

 

Helena Barbas [Expresso, 31 Janeiro 1998]  


 Asas para que vos quero - Abel Neves - Cotovia, 1997


 

 

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